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Thot
THOT*
*Deus egípcio, versado em técnicas mágicas muito poderosas.
Para quem escreve memórias, onde acaba a lembrança? Onde começa a ficção? Talvez sejam inseparáveis. Os fatos da realidade são como pedra, tijolo –– argamassados, virados, parede, casa, pelo saibro, pela cal, pelo reboco da verossimilhança –– manipulados pela imaginação criadora. (Pedro Nava)
Uma ciganinha leu a minha sorte, ela me pediu para que eu não saísse de casa, porque havia grande perigo de vida, como indicava minha linha da vida. Não posso obedecer, tenho compromissos. Não acredito em buena-dicheira ou vidência. Sou agnóstico, não creio nas coisas imateriais, eu sou energia; tudo é. Não há destino, predestinação, salvação e ressurreição. Eterno retorno é balela. Também não defendo o livre-arbítrio, sou pensador: “Nosso livre-arbítrio é livre como um pássaro na gaiola.” Por exemplo, eu poderia obedecer à ciganinha, contudo não vou; sigo em frente que atrás vem gente. Hoje vou caminhar pela ferrovia. Sei que posso ir pela estrada macadamizada, mas não dá, não, porque inexiste livre-arbítrio e algo vai acontecer... exatamente na linha férrea. Assim, minha liberdade é quase zero. No fundo, nós fazemos ou deixamos de fazer o que nos permitem, somos dentes de uma engrenagem, da qual não podemos escapar. Somos coagidos sempre, pensamos que estamos agindo de tal ou qual forma, porque queremos; doce engano. Algo nos mantém dominados e disciplinados, temos missão a cumprir, não sabemos qual. Não obstante... Caminhamos como gado para o matadouro. Nada muda nosso destino. Temos apenas sensação de que estamos no comando. Somos formiguinhas a alimentar a rainha em algum lugar secreto no mundo. Nada mais somos do que um ajuntamento de átomos, dispostos de certa maneira, formando células, que exercem funções diversas e que me fazem pensar que existo. “Penso, logo existo.” Eu sou um pensamento que vaga por aí.
Hoje, o dia me promete o melhor: o Sol é radioso, o meu cãozinho Til, serelepe, pede um pouco de ração e eu me sinto leve, solto e alegre. Sim, tudo vai ser muito bom, pois os deuses sorriem para mim, e forças invisíveis conspiram a meu favor: Meus negócios prosperam, minha namorada me ama, e meu amigo Mundinho me espera logo ali. Mundinho é só o apelido; seu nome: Raimundo. Só encostei a porta da casa, não preciso fechar ou trancar; nada de mal acontece aqui; a vizinhança é honesta, legal e familiar.
Vou à luta do dia a dia, afinal, os meus fregueses não podem esperar... é um barato... eu vendo livros, o pão do espírito, OK! Após ter andado uns quinhentos metros na linha do trem, Mundinho me esperava lá adiante. Ele foi reconhecido por Til (sempre comigo), que correu pra ele e recebeu os carinhos de sempre. Mostrou satisfação, sacudindo o rabinho como todos os cães sacodem. “Será que o rabo sacode o cachorro?”. Cumprimentei Mundinho e continuamos entre os trilhos, pisando nos dormentes aqui e ali, e chutando cascalhos. Peguei um deles e atirei-o no rio que passava ao lado: o rio Paraíba do Sul, que é separado da via-permanente apenas por aleia de erva-cidreira. A pedra que atirei deu três saltos, como tainhas, antes de desaparecer em imenso redemoinho d’água.
De repente, meu coração travou, confrangeu e pensei que algo estava muito errado, mas minha confiança na vida é sem limites, eu sabia ser vencedor de “demandas”. Logo adiante havia a curva bem acentuada, onde os trens reduziam a velocidade para não descarrilarem. Vinha uma composição, eu sabia.
Ouvi o grito de um triste-pia: “Pague-me os dezesseis centavos que me deves faz mais de ano e meio. Tse, tse”!
Mundinho ficou estranhamente silencioso, eu também dei uma parada na conversa. Os pássaros silenciaram, o vento cessou, o calor nos abrasou; um silêncio profundo nos envolveu. Aconteceu: Um desconhecido, pelo menos para mim, saiu de trás de um espinheiro de unhas-de-gato e veio em nossa direção. Ele podia caminhar para onde quisesse..., mas, sem mais nem menos, sacou o revólver e atirou em nós: “bam-bam”! Uma bala passou rente à minha orelha esquerda e arrancou pedaço do lóbulo; a outra coriscou na direita. Mundinho deu meia-volta volver e disparou em sentido contrário ao atirador. Fiquei paralisado de surpresa, sentindo enorme friagem da cabeça aos pés, e arrepiaram meus cabelos. O homem cada vez mais perto, disse-me friamente: “Eu queria o outro, mas ele fugiu, com você vou acabar”.
Sim, eu tive um desdobramento ou dissociação do corpo e do espírito: Ficou a matéria saiu a energia, entrei em outra dimensão, outro plano. Vi meu corpo estirado ao chão, assisti, indiferente, à minha execução, bem ao lado da ferrovia, como se não fosse de meu interesse. Ocorreu um fenômeno inexplicável: minha desmaterialização me deu coragem imensa, não tive medo algum e, mais ainda, tinha certeza de que nada me aconteceria; que ‘meu assassinato’ era brincadeira de mau gosto, piada insossa. Eu imortal, rá, rá, rá. O executor baixou a arma, mirando firme na minha cabeça. Puxou o gatilho: uma, duas, três vezes. Uma bala pipocou, bam! no ouvido; outra, bam! acima na orelha; bam-bam! na nuca. Morri? Não... “Graças a Deus!” Eu achava a situação hilária mesmo: O corpo “não era o meu corpo”, o verdadeiro eu estava à beira da estrada, em dimensão paralela, observando o evento. Eu ria daquilo tudo; grotesco acontecimento.
Depois da covardia inicial, Til, meu cão, se recuperou feroz. Atacou meu executor, mordendo-o nas canelas, rosnando furiosamente, até parecia possuído pelo demônio. O homem negaceava e lhe dava pontapés, mas Til avançava sempre, indômito. Ouviu-se o apito na curva, era a composição que vinha em nossa direção. O homem recarregava o trezoitão para terminar o “serviço.” Ao ouvir o trem aproximar-se, pulou fora dos trilhos; antes, deu em Til mais um tiro que lhe entrou na garganta e deve ter feito um estrago nas suas vísceras. Til lhe deu a última dentada e foi deitar-se a meus pés. “Pobre e fiel amigo, me defendeu até o fim.” Aproveitei o momento para retomar meu corpo e fugir para o matagal. Ferido, fui bater à casa de Mundinho. Fui?... Encontrei sua mulher que pôs uma panela cheia d’água a ferver; com certeza, para nos defender do sicário, caso ele fosse me perseguir.
Ela... mulher esquisita, não ligou muito pra mim... estranhei, sim. Fui ao banheiro onde me vi todo ensanguentado. Acreditei, agora, que não estava sonhando, ou estava? Era eu? ou um avantesma? Lavei o rosto e vi nitidamente os furos das balas na minha cabeça, na nuca e no ouvido direito. Parece que eu estava examinando outra pessoa, um estranho para mim. Anestesiado, certo eu estava. Não tenho medo, evidentemente, algo irreal acontecera. Então, alertados por passantes, chegaram os acadêmicos da Escola de Medicina de Três Poços. Levaram-me à emergência, esquadrinharam minha cabeça e concluíram que o caso era muito grave para eles tourearem. Resolveram me transferir para o Hospital Central, na cidade, onde haveria mais recursos.
Os médicos da radiologia tiraram radiografias, estudaram o problema murmurando, incrédulos: “Destruição do lóbulo direito, comprometimento do canal do ouvido; trompas de Eustáquio rompidas, surdez consequente; transfixação da nuca no sentido longitudinal; marcas de muitos tiros à queima-roupa, pelos vestígios de pólvora. Milagre ele não ter morrido”. Não acredito em milagres. Plenamente consciente, em decúbito ventral, tentei pegar a radiografia das mãos do radiologista, não consegui, mas vi os sinais de estilhaços e buracos no couro cabeludo. As balas entraram e não saíram... mistério. Elas desapareceram em minha cabeça. Pontos brancos, só pontos brancos marcavam a perfuração delas em meu crânio. Onde os projéteis estavam? Desmaiei, e acordei horas depois, com uma bandana na cabeça, tapando os ferimentos.
Quem foi o meu agressor? Por que atirou em mim? Seria eu vítima da trilogia: homem errado, no lugar errado na hora errada? Aonde foi parar meu amigo Mundinho? Em que toca se escondeu? Quem sou eu? Perguntas que me faço, até hoje, sem respostas. Por enquanto, estou aqui, no Planeta Azul, pra terminar a novela da minha vida.
Após semanas, sem que ninguém me atendesse, eu era ignorado por todos, fugi do Hospital e fui visitar o local do incidente. Agora, relato para vocês a inacreditável vicissitude que vivi; a experiência quase morte (EQM)... Quase...
Ah, pesadelo...
“Til vem cá, meu amigo!”
Adoro um cigarrinho de palha enquanto espero a luz que nos levará ao céu das estrelas fixas.
Há no céu e na terra, Horácio, bem mais coisas do que sonhou jamais vossa vã filosofia. (William Shakespeare)
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