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A Quiromante
A Quiromante
Asséde Paiva
Mustra la mano, señor, / No hayas ningun recelo. /
Bendígate Diuz del cielo, / Tú tienez buena ventura, /
Muy buena ventura tienez. / Muchuz bienez, muchuz bienes […]
(Gil Vicente (In Auto de humas ciganas, 1521)
Era em 1787... e chovia torrencialmente.
A um quilômetro do Registro de Parahybuna, em um rancho miserável de dar dó, uma fogueira acesa, no piso de chão, iluminava o ambiente deitando sombras fantasmagóricas nos quatro cantos. As paredes de estuque, cheias de buracos, deixavam passar livremente o frio, a chuva e o vento, que a todos incomodava. O rancheiro, estalajadeiro examinava uma figura estranha que se confundia com as sombras. A pessoa indigitada usava uma capa com um capuz, que lhe escondia as feições. Ele era do mal. Seus olhos brilhavam como os de brasa de satanás. No momento, bebericava uma garrafa de zurrapa de casca de árvore.
Um tropeiro e seus ajudantes: o guia, o arrieiro ou bruaqueiro e um negro forro chegavam naquela hora e abarracaram no mesmo rancho. A tropa vinha do Rio de Janeiro. Assim que espalharam as canastras e cangalhas pelo chão, puseram-se a conversar sobre problemas e soluções da viagem. Doze dias se passaram desde que partiram do Porto Estrela, na falda da Serra, onde se perderam três burros, que rolaram do penhasco na Serra da Mantiqueira.
Num tripé ferventava água para o café, e o pó de café espalhou um aroma de dar água na boca.
O rancho, uma simplicidade extrema: o piso era de chão batido; quatro esteios de braúna, em cada canto, sustentavam as vigas de peroba; o telhado de folhas de coqueiro. O tropeiro-chefe só clamava por pequena melhora no tempo, para seguir viagem em direção a Curral Del Rey, hoje Sabará e às minas de ouro de Sabarabuçu, Vila Rica (Ouro Preto) e Vila do Príncipe (atual Serro), no antigo Distrito Diamantino, no Brasil colonial.
Enquanto esperavam pelo café, os ajudantes mascavam fumo, e o tropeiro-chefe comia lascas de toucinho, após enfiá-los num pote de paçoca, com um punhal.
E o tropeiro-chefe dizia bem audível:
–– Na cidade estão comentando sobre a insatisfação dos garimpeiros quanto ao pagamento de impostos e falam num tal de “Derrama”, que está para ser decretado. Não sei não, esse abuso vai acabar: o povo não aguenta.
Calou-se, pois ouviram-se batidas na porta.
–– Capitânia, ordenou o tropeiro para o negro escravo: –– “Vai” ver quem bate!
O negro, de porte atlético, levantou-se de perto do fogo e, com a cara muito ruim, foi abrir a porta.
Uma lufada de vento sacudiu os candeeiros e, entraram cinco homens uniformizados e molhados: dois soldados, um anspeçada, um furriel e um agaloado, Alferes, certamente o chefe. Dragões do rei, em patrulha no Caminho Novo, da Estrada Real. Seus chapéus escorriam como biqueiras no telhado. Quem está na chuva e pra molhar.
O tropeiro assustado levou a mão ao bacamarte, seu auxiliar segurou o punhal, mas o visitante, o chefe, a um sinal, tranquilizou-os em fala nasalada:
–– Não tenham medo, não vou fiscalizar nem prender oceis. Apenas quero enxugar minhas botas ao fogo e comer alguma coisa. Nossa patrulha é de passagem. Dormimos na fazenda da Borda do Campo de José Ayres Gomes, ele mostrou-se simpático a “nois”. Depois, ao descer a Serra, prendemos e enforcamos alguns salteadores, incluindo Montanha, o cigano chefe e seu coiteiro, Beiju. Eles assaltavam os viajantes, à procura de ouro e de pedras preciosas. O perigo lá é tão grande que os viandantes esperam no alto da montanha outros viajores para descerem em grupo de dez ou vinte e enfrentar os quadrilheiros. Acho que resolvi o problema, por hora. Mas temos outros bem mais graves...
Parou de falar. Sentaram-se ao redor do fogo; o chefe, Alferes, enfiou uma acha de lenha na pira e agitou-a, a fim de aumentar as chamas. O fogaréu fez fumaça, enevoando o ambiente. Ele perguntou ao tropeiro-chefe:
–– Ocê, que vem de Rio de Janeiro, quais são as notícias?
–– Não são boas, há agitação entre as gentes. O Governador-Geral está tendo muito trabalho com a escravaria. Há fugas imensas de escravos. Quilombolas se formam na floresta da Tijuca e assaltam os desavisados. À noite ninguém pode sair, porque uma punhalada é quase certa. Se alguém pede socorro, não recebe ajuda. Agora, as vítimas estão gritando fogo! E muitos aparecem nas janelas, porque têm medo de incêndio. E ocê aonde vai? Tá atrás de alguém?
–– Eu vou ao Rio tentar obter apoio importante para nossa causa... Suspendeu a frase, receoso de ter ido longe demais. Em boca fechada não entra mosca.
O embuçado estremeceu ao ouvir a palavra “causa”, e encolheu-se no capote.
–– Não se preocupe senhor –– o tropeiro acalma todos, nós somos civis e não nos envolvemos em assuntos militares.
Então, o Alferes continuou a lenga-lenga:
–– Embora eu tenha sido preterido na carreira militar, em favor de portugueses adventícios, não reclamo. O Rei, Deus o tenha, não olha nosso Brasil. Até parece que esta terra é o seu quintal. Portugueses mandam nosso ouro para a Corte, cortam nossas matas e levam a madeira para Lisboa. O pau-brasil está no fim. Os impostos são escorchantes, pela hora da morte. Não há quem aguente os “quintos”, “registros" e "contagens". O Fisco régio cobra impostos e taxas sobre escravos, empregos públicos, casas comerciais, engenhos de açúcar, travessia de rios; além de vender pólvora, sal e gêneros alimentícios. Nada pode ser fabricado aqui, tudo vem de Portugal. Há um grupo descontente nas Minas Gerais e, no Rio de Janeiro, também. Vamos fazer desta terra um país independente, soberano.
O encapuzado tremeu e derramou meia caneca de vinho ao chão e não foi notado, porque era uma sombra difusa na sala, enfumaçada.
–– Isso nunca vai acontecer, senhor Alferes, contestou um tropeiro. Suas palavras cheiram a sedição ou traição. Aqui, não há povo brasileiro, nós somos portugueses de aquém-mar. O Rei é nosso pai e protetor. Somos fiéis a ele e seus súditos mais leais. Parou de falar, porque se exaltara e deu nova ordem ao negro:
–– Capitânia “vai” ver se nossas bestas não fugiram do cercado. Precisamos delas “arriadas” bem cedinho, o tempo é curto.
Mais uma vez, o escravo levantou-se de péssimo humor, quando, de novo, bateram à porta e uma voz de mulher:
–– Abram, por favor, estou doente e faminta!
O negro abriu a porta, e andrajosa mulher entrou, correu, sem salamaleques para o fogo, onde se pôs a esfregar e a esquentar as mãos.
Ela tremia e teve um misto de raiva e susto ao ver os soldados.
–– Senhores, estou ensopada até os ossos, deem-me uma coberta e comida, morro de fome.
De uma canastra tiraram colcha de lã, e a mulher se enroscou, ao pé do fogo, mesmo com roupa molhada.
O Alferes condoeu-se e deu-lhe um pouco do seu farnel.
Ela comia avidamente, enquanto olhava o Alferes de soslaio.
–– Mulher, perguntou o Alferes, o que “faz” nestas brenhas?
–– Eu pertenço a um grupo cigano. Eles foram emboscados e perseguidos na Serra. Muitos foram mortos, outros fugiram para esconderijos na floresta. Eu vim me escondendo e comendo bicho de bambu ou roendo “parmito”, e as “fruta” que encontrei na beira da estrada. Dormi em ranchos abandonados. Vou procurar meu povo. Posso ficar aqui esta noite?
–– Pode, sim, disse o tropeiro-chefe, e como “cê” chama mulher?
–– Joana. –– E o sinhô?
–– Sou Joaquim...
–– Que coincidência! –– disse o Alferes, que ouvira o diálogo. –– Eu também sou Joaquim. E nada mais disse, nem lhe perguntaram. Aliás, pensava ter falado demais.
Cada qual contando um causo, a noite passou. O bruaqueiro, entrementes, se queixou de dor de dente, que não o deixava em paz.
Alguém lhe enrolou uma badana sob o queixo até à cabeça.
O Alferes, que entendia de dentes e tinha um boticão no alforje, levantou-se e mandou o bruaqueiro abrir a boca. Concluiu que nada podia fazer, pois havia uma cratera no dente. Então, pegou a garrafa de cachaça e deu goles ao doente.
–– Vixe, eu vou ficar tonto!
–– É isso mesmo, disse o Alferes. E deixou o homem por algum tempo, até que o álcool lhe subiu à cabeça. Depois, pegou o boticão enferrujado, e arrancou o dente cariado.
–– Ai, ai, ai! –– Urrou o bruaqueiro. Mas logo veio o alívio e ele pôde cochilar num restinho de noite.
Pela manhã, a chuva estiara.
–– Capitânia, ponha a “cangaia” nas besta! –– ordenou o Alferes.
Todos cuidavam dos afazeres, quando a cigana, em retribuição ao acolhimento, pediu para ler a boa-fortuna deles. Disse-lhes o que queriam ouvir: todos “iam” ser ricos, casar com mulheres lindas, achar pepitas de ouro, diamantes, esmeraldas e seriam fazendeiros, com muitos filhos. Quanto ao negro, ela lhe disse que o via com uma corda na mão.
Quanto ao Alferes, foi direta, seca e poética:
Na sua linha da vida
há um corte mui profundo
Deus queira estar errada
cedo vai partir do mundo.
Claro que ninguém a levou a sério.
Quando o Alferes ia saindo, o tropeiro-chefe perguntou:
–– Desculpe, qual é mesmo sua graça?
–– Joaquim José da Silva Xavier.
Por último, levantou-se da cadeira o encapuzado solerte e caminhou para a porta de saída.
A cigana segurou-o pela manga e falou:
–– O senhor não quis que eu lesse sua sorte, mas diz seu nome...
Ele negaceou, fuzilou-a com olhar: Sou Joaquim Silvério dos Reis.
Ela leu sua alma de bronze. Estremeceu. Quando ninguém podia ouvi-la, murmurou:
“É o destino, numa só noite conheci o delator, o padecente e o carrasco”.
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