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Rosário - Minha Terra
Rosário - Minha Terra
Rosário de Minas
Minha terra, minhas raízes
Quem fica na memória de alguém não morre (Betinho)
Trabalho dedicado aos que viveram, vivem, viverão e amam Rosário de Minas.
Eita lugar antigo! Significa coroa de rosas e deve ter proteção especial de Maria, a nossa mãe no céu. Em anotações no Álbum do Município de Juiz de Fora (Albino Esteves, 1915), lê-se que em 1815 foi feita uma doação para construção de uma igrejinha. Seria, mais tarde, Igreja de Nossa Senhora do Rosário. É de Rosário que vamos falar.
Não sei como explicar e muita gente também não, como um lugarzinho tão pequenino, bucólico, distante, entre morros (mais ou menos elevados), conseguiu subsistir tanto tempo em nossa memória. Estou falando de meu berço: Rosário.
Rosário (de Minas) é um distrito a noroeste de Juiz de Fora, com essas fronteiras, no passado distante: São Francisco de Paula (atual Torreões); Santos Dumont (antes João Gomes, depois Palmyra); Paula Lima (ou Chapéu d’Uvas, antes Rocinha de Nossa Senhora da Assunção do Engenho do Mato); Lima Duarte (Nossa Senhora das Dores do Rio do Peixe), Pedro Teixeira e Bias Fortes (antes, Quilombo, ex-União).
O povo de Rosário historicamente é muito ressabiado. Qual a razão? Não sei responder. Eles não gostam (ou não gostavam) de informar a estranhos sobre seus bens e propriedades, de modo que são raras as fontes confiáveis de consulta. Medo de impostos? Talvez. Só um psicólogo poderia dizer sobre este comportamento arredio dos fazendeiros do lugar, na época desses eventos.
Vamos viajar no tempo, olhar num espelho distante, antes que vento leve nossas recordações para as brumas da memória. Falaremos de Rosário há oitenta anos.
Rosário está a quarenta e oito quilômetros do centro da cidade de Juiz de Fora. Rosário está e estará sempre em meu coração. Num lugarejo pertinho: Valadares, nasci num brejal e foi há quase noventa anos.
Ainda gosto de Rosário como se minha vida fosse totalmente vivida por lá. Será a magia do nome? Será por que nos lembra da religião da maioria dos brasileiros? Não sei! Ser rosarense é um estado de espírito. É ter orgulho de ser de lá.
Lembro-me de que, ainda pequeno, morando em outras plagas, demorávamos um dia de viagem para chegar a Rosário. Tomávamos um trem. “Puxa, era muita força tomar um trem” em Juiz de Fora. Não se pensava ou se falava em ônibus, que transitava longe de onde morávamos O trem de ferro, maria-fumaça, tinha dois nomes: Penido e MJ. O primeiro nome devido à estação da linha férrea que, por muitos anos, findava num local a que deram o nome Penido, naturalmente em homenagem ao doutor João Penido, um político mineiro; o segundo nome: MJ, talvez fosse apenas sigla do ramal que mais tarde iria a Lima Duarte. O trem não passava por Rosário, que ficava bem afastado. Descíamos em Valadares, outro lugar pequenino, que teve seu nome graças ao governador Benedito Valadares.
Sou rosarense, e como sou! Se pudesse, tiraria carteira de identidade com o nome Rosário. Um tio, já falecido, tinha na carteira de identidade o registro: natural de Rosário. No meu diploma de Bacharel em Direito está: nascido em Rosário.
Meus avós maternos moravam em Rosário; meus bisavôs maternos eram os donos da Fazenda dos Arrependidos (com este nome, deu no que deu, quebrou; o banco tomou). A Fazenda ficava em Penido. Meu avô foi dono da Fazenda São Mateus, entre Valadares e Rosário e, com eles, vivi tantos anos passei a chamar minha avó de mamãe. Meus pais, de mudança em mudança foram para a Fazenda Velha, que também era parte da uma fazenda maior: São Mateus. Também, não sei por que falavam Fazenda Velha, talvez por estar decadente, onde o vento entrava na sala e saía na cozinha. Minha bisavó, materna, a quem chamavam Dona e para nós era a madrinha Dona era a legítima proprietária. Do alpendre da Fazenda Velha, na estrada vicinal, Velha, víamos a trilha, numa elevação, que levava à fazenda Cachoeira, do tio Camilo Novais, casado com a tia Ovídia. Ele tinha muitos filhos. Eu me lembro de Osvaldo, Josa (José), Irani, Gracindo, Helvécio, Crispim, Marieta com as filhas Vitória, Lucília.
“Lucília! Poderia ter sido diferente, não é mesmo? Você, tão bonita, foi miss rosarense, não foi?”
Moramos na fazenda São Mateus seis anos. Íamos a festas no arraial de Rosário, e trago, até hoje, lembranças das santas missões e do padre Gabriel, um redentorista cantando: Jesus é meu, eu sou de Jesus, Jesus vai comigo eu vou com Jesus... Enquanto, na Praça da Igreja de Nossa Senhora do Rosário rodávamos, de mãos dadas, em torno dele. Depois, ele nos entregava um cartãozinho com números, que devíamos esmolar e a cada uma, dar um furo, até preencher todos os quadradinhos. Eu estava com quatro ou cinco anos.
Alguns nomes dos habitantes de Rosário ficaram registrados na minha memória, vou enumerá-los ao acaso: Neneca de Almeida (meu bisavô, Papai Neneca), Agostinho, Jovelino, Maria, Joaquim (meus tios, lado paterno, os Minga); Agostinho Almeida, Joaquim, Ana, Antônio, Cecília, João, José e Thereza (tios do lado materno: os Almeida). Nossos primos os Lulu, a família Chico Nico, a família Portes, os Ribeiro Oliveira, os Aquino Ramos, os Guedes, os Almeida Sales, os Almeida Paiva, os Resende Franco, os Militão, os Machado, os Marcelino de Aquino, os Minga Leite, os Esmério Fernandes, os Marques, os Moreira, os Reis e muitos outros. Se pesquisarmos bem, naquela Terra todos nós éramos parentes.
Eu, ainda adolescente, fui a uma festa em Rosário que me marcou profundamente, pois bebi, em três dias, sete litros de Martini. Tomei porre antológico e nunca mais quis ver este tipo de vermute. Na verdade, nunca mais bebi. Naquela festa estava acompanhado de um grande amigo (Didinho), que já partiu deste para outro plano espiritual. Ainda nesta festa, as garotas aprontavam contra os rapazes, por frequentarem três ou quatro bailes simultâneos. Elas iam de um baile a outro e nós tínhamos que pagar entrada em todos para dançarmos com elas. Aconteceram situações desagradáveis comigo, que não vou relatar para não manchar belas recordações.
Rosário de Minas me lembra de que foi em seu derredor que sofri meu primeiro amor. Adolescente apaixona-se facilmente. Fiquei com belíssima dor de cotovelo. E superei... Tudo passa... Que pena não poder dar o nome daquela menina! Não vou citá-la, porque não quero dar o braço a torcer. Honestamente, para meu consolo, acho que foi melhor tomar aquele estrondoso “fora”, porque fui à luta, viajei pelo mundo, conheci outras pessoas e acho que me dei bem. Certamente, se fosse o contrário, hoje, poderia ser um mero sitiante em algum recanto, perto da terrinha de meus avós. E talvez, muito infeliz. Só Deus sabe o que poderia ter sido e não foi
Rosário fica na Zona da Mata mineira; sua área imensa foi sendo reduzida a pouco e pouco, pois outros lugarejos gritavam independência. A magia deste lugar está dentro de nós.
Quando alguém querendo homenagear um rico homem trocou o nome Rosário para Augusto Franco, houve revolta do povo, um clamor geral e o nome não pegou. Nós, rosarenses de raiz, jamais concordaríamos com a mudança do nome. Rosário retornou a Rosário de Minas. Argumentaram que nosso Rosário poderia ser confundido com a cidade de Rosário, na Argentina. Imaginem que absurda e infeliz troca, felizmente, cancelada. Nós temos orgulho em falar: sou rosarense.
Meu avô, parêntese para ele: Tinha uma hoploteca ou arsenal em casa: Espingarda de encher pela boca; –– de cartucho; revólver; garrucha; mosquetão; antiquíssima colubrina; fuzil; filobé (corruptela de flobér, palavra francesa designando certo tipo de carabina ligeira de carregar pela culatra, de Flobert, armeiro francês, 1819-1804) etc., e pentes de balas sobre a escrivaninha. Também jamais o vi dar um tiro sequer. Onde foram parar aquelas armas? Fecho parêntese.
Meu avô foi subdelegado ─ polícia, na verdade ─ quase vitalício, naquelas bandas. Só nos últimos tempos foi defenestrado por Helvécio, o filho do tio Camilo Novais. Helvécio era sobrinho e afilhado de vovô, padrinho Chiquinho (assim eu o chamava). Ele também atendia por Chichico de Almeida ou simplesmente Almeida. Ele ficou uma fera por ser substituído, queria o cargo vitalício, mas já estava velho e não largava o osso. Hoje, penso que ele era um tantinho mau: vezo de polícia. Gostava de aplicar correções, principalmente nos pobres, com vara de marmelo e chibata. Honra seja feita, naqueles tempos não havia crimes atrozes, assaltos, sequestros, drogas etc., apenas roubos de galinhas, de bananas, bezerros, mudança de cerca de arame, com alteração de divisa, enfim, pequenos delitos.
Meu avô tinha uma bela casa para os padrões vigentes na época (1915): toda envidraçada, forrada parte em tábuas, parte em esteiras; assoalhada com madeiras de lei. Faltava algo essencial para os viventes de hoje, mas desprezado pelos da época: não tinha sanitário, ou privada, ou banheiro ou WC. As necessidades fisiológicas eram resolvidas no mato, num goiabal, num canavial ou debaixo de uma frondosa jabuticabeira. Havia que se cuidar, porque jararacuçu, urutu e cascavel abundavam naquela terra. Mas, tudo bem, no geral as casas eram assim: Higiene mínima, e luz de lampião ou lamparina. Muita pulga, bicho de pé à beça e piolhos (tratados com pó de Joana). A casa de meu avô apresentava extremos: não tinha vaso sanitário, mas tinha telefone e gramofone. E o presidente de Minas, Antônio Carlos Ribeiro de Andrade, dormiu uma noite nela. Quanta honra!
“Seu” Chiquinho tinha grande vontade tocar um instrumento musical, fosse de percussão/corda ou de sopro, porém não tinha dom. Comprava cavaquinho, trombone, saxofone, bombardino, clarinete, violino e outros e outros, sempre deixando de lado. Os filhos aproveitaram e aprenderam e formaram uma banda de música denominada Euterpe (deusa da música) de Santa Cecília. Até minha mãe, quando solteira, solava uma viola. A banda durou uns cinquenta anos e era famosa na região. Formada por parentes e amigos era exclusiva nos povoados de Pirapetinga, Palmital, Valadares, Manejo, Penido, Igrejinha, São Francisco de Paula, Chapéu d’Uvas, Paula Lima, Toledos, Humaitá, Monte Verde, Ewbank e outros. Chegaram a tocar em Lima Duarte. Meninos, eu a vi e a ouvi! Que glória!
Minha avó era tão boa que deixava de comer guloseimas para nos dar, nos presentear. Verdade, sim! Todos a chamavam de Nhanhá, nós, netos, a chamávamos mãe. Minha inesquecível vó! Eu te amava e amarei sempre! Que Deus lhe dê o céu!
Rosário, como quase todos os lugares do Brasil, tinha três ruas: Principal, Direita e Sete de Setembro. Os dois últimos nomes desapareceram ou caducaram com passar dos anos. Acho que elas são anônimas. Há anos não tenho notícias de lá. Falar em ruas é força de expressão, na verdade (no passado), elas eram caminhos de chão à beira das casas, por onde circulavam pessoas, tropas, tropeiros e carros de bois.
O arraial não tinha mais do que 2.000 almas espalhadas por sítios, fazendas e, no centro, uns quinhentos habitantes. Rosário teve tempos bons e maus. Com o fim da escravidão, a decadência chegou violenta. Os bons tempos, tempos de fartura, não os conheci, mas soube que havia padre colado, fábrica de manteiga, mercadores de gado, seleiros, padaria, farmácia, sapataria, vendas/armazéns, forjaria, tavernas e autoridades: Juiz de paz, escrivão, subdelegado, dois ou três policiais e o padre Gallo. Houve um padre, tantã, que quebrou todas as imagens/ícones da igreja, bem como destruiu parcialmente os túmulos do cemitério. Este, sim, foi um padre iconoclasta!
Meu Rosário (o que vi) era meio termo entre o progresso e decadência. Todos sabiam a lenda da fonte milagrosa, relatada no Diário de Minas de no 110, ano 1, de 18 de outubro de 1888:
“Distante deste povoado, existe, há mais de meio século, uma gruta situada na serra da Saudade, de onde jorra continuamente uma mina de água que, segundo as tradições dos velhos daquele tempo, é milagrosa”.
A Serra está lá até hoje, é milenar, se alguém quiser conferir é pegar o ônibus (o trem acabou), descer em Valadares, caminhar, caminhar, entrar na gruta e se banhar. Quem sabe vai se curar bebendo ou se banhando na água milagrosa? Quem sabe? Eu tentaria...
O povoado de Rosário com a Igreja Matriz (na Praça da Matriz) é consagrado a Nossa Senhora do Rosário. Outra ermida é dedicada ao Senhor dos Passos, fica na rua Principal. Nas procissões, nas festas, na Semana Santa e missões, o povo vai contrito de uma para outra. No passado, a Semana Santa era oportunidade da maior manifestação devocional do povo católico do lugar e dos arredores. Todos os fazendeiros, arrendatários, meeiros, roceiros, sitiantes afluíam ao povoado onde, em geral, tinham casas próprias ou de amigos à espera. O ponto culminante dos festejos: a procissão do encontro, o sermão das sete palavras e a fala de Verônica. Quem Foi Verônica? Detalhes desta história ficam restritos ao milagre do rosto impresso no pano e as curas provocadas por sua presença. Uma das versões ocidentais que fala sobre a Verônica, diz que ela foi a Roma com a relíquia preciosa. Noutra história ela é conhecida como a esposa de Zaqueu. Outras versões fazem-lhe a mesma pessoa que Martha, a irmã de Lázaro, a filha da mulher de Canaan. Em outra versão, ela é uma princesa de Edessa, ou a esposa de um oficial romano desconhecido. A versão mais acreditada da origem de Verônica é encontrada em uma adição em latim do texto apócrifo do quarto século, conhecido como Atos de Pilatos ou Evangelho de Nicodemos. Nele, Verônica é identificada coma a mulher que teve uma hemorragia e foi curada (9:20-22 Mt).
Minha mãe fazia o papel de Verônica, quando solteira. Havia enorme densidade espiritual na manifestação religiosa, se bem que os devotos se limitavam a ajoelhar, levantar, persignar e bater no peito, mea culpa, mea maxima culpa... sem entender nada, pois a missa era latim. Orate fratres...
Nas festas anuais despertávamos, na alvorada, aos sons das bombas e foguetes. Após a missa realizava-se o leilão com belas prendas, bolos, doces, salgados: frangos assados, leitoas, frutas e bebidas, tudo muito bem organizado e preparado pelos festeiros e coordenados pelo fabriqueiro. De vez em quando, o leiloeiro fazia uma pausa no leilão, para uma sessão da banda Euterpe, já citada, de meu tio, a qual executava belos dobrados e valsas. E os fogos espipocando: bum! bum! bum! Claro, comemoravam-se os dias de São João, São Pedro e Santo Antônio com fogueiras e quadrilhas. Havia festejos ótimos no mês de maio, diziam mês de Maria. E, após a missa, quase sempre, víamos Jorgina e seu filho José, no adro. Ele era portador de necessidades especiais e nos dava medo, vendo-o no colo da mãe. Isso a gente não se esquece nunca. O rapaz morreu aos 33 anos de idade (idade do Cristo) e corria a lenda de que realizava milagres. Creio que isto foi esquecido no tempo presente.
O cruzeiro, bem defronte à Matriz, tinha altura mediana e os complementos: a escada para nos lembrar da subida ao céu (nossa, ou de Jesus); INRI; a lança; o galo, no topo, para que não esqueçamos da negação de São Pedro, a Jesus. Não me lembro de cálice e da coroa de espinhos.
O cemitério é na parte mais alta, logo atrás da igreja Matriz. Sem medo de errar, muitas gerações de minha árvore genealógica dormem nele o sono eterno (dos justos... Uns e outros, como dirão, não tiveram vidas exemplares). A maior tristeza dos moradores do lugar era ouvir o badalar dos sinos bam, tam, bam, tam, informando a morte de alguém, que traduzíamos assim:
Morreu gente! Morreu gente!
Morreu gente! Eu vos previno...
Mas quando nascia uma criancinha, o bimbalhar parecia nos dizer:
Nasceu gente! Nasceu gente!
Nasceu gente! Eu vos previno...
E no casamento:
Casa gente! Casa gente!
Casa gente! Eu vos previno...
E no Natal:
É Na-tal! Na-tal! Na-tal!
Em Be-lém! Bem-Bom! Bem-Bom!
À meia-noite de 24 de dezembro celebrava-se a missa do galo, concorridíssima. E as moças do coro entoavam Noite feliz.
Noite feliz, noite feliz, / O Senhor, Deus de amor,
Pobrezinho nasceu em Belém. / Eis na lapa Jesus nosso bem.
Dorme em paz. Ó Jesus. / Dorme em paz. Ó Jesus.
Noite de paz, noite de amor. /Tudo dorme em redor.
Entre os astros que espargem a luz / Indicando o menino Jesus.
Brilha a estrela da paz. / Brilha a estrela da paz.
Não me lembro da composição na íntegra. Cantavam também Queremos Deus; Bendito, louvado seja; A nós descei Divina luz; Magnificat e outros hinos. Minhas primas Cecília, Catarina e Domingas tinham vozes encantadoras, melodiosas. Hoje em dia, não mais se cantam os maravilhosos cânticos gregorianos. É pena!
De vez em quando, a modorra do pessoal do lugar era despertada por um carro de bois que adentrava por um lado, saía pelo outro, chiante, cantando tô pesado... pesado; e o carreiro: Eia, malhado! namorado, brasileiro, eia! Chega pra lá! Eia! Ôa! Acabava de passar, vinham tropas das famílias: Mano, Lulu, Rezende, Almeida e outros trazendo açúcar preto, rapadura, café, milho, cana e lenha. E voltavam com querozene, sal, bacalhau, roscas e implementos agrícolas: Enxadas, foices, machados pregos etc.
Um riacho (São Mateus?) nascia nas vertentes do morro do Cascalho ou Taquaral, ou Carrascal, margeava, pelos fundos, as casas da rua Principal, passava atrás da capela do Senhor dos Passos, seguia para a fazenda São Mateus, de Dona; topava com o pico ou topo do morro Alto ou morro Grande, ou da Picada. Santo Deus, eu estou vacilando! Fazia um ângulo de noventa graus, passava sob a ponte coberta, escorregava pela pedreira, fazendo o chuá, chuá, perto da casa de Marieta e da tia Ovídia. E continuava a jornada pelo brejal, indo, muito além, desaguar no famoso Rio do Peixe, nos contrafortes da serra da Saudade (a serra da água milagrosa). No inverno, tempo das águas, o riacho crescia assustadoramente, invadia toda planície e, por semanas, isolava Rosário da civilização. Acho que Rosário estava isolado em todas as estações do ano...
A escola (se tinha, olha o vacilo!) ensinava até o terceiro primário. Lembramos que, naquele tempo, ainda se usavam castigos como palmatória e ficar de pé (por muito tempo), olhando a parede, bem como, copiar centenas de vezes uma frase ou palavra. Honestamente, não me lembro de onde ficava a escola e o nome da professora, mas, lembro-me claramente, que os fazendeiros mais abastados contratavam professores para seus filhos e dos colonos e/ou vizinhos. O mesmo se dava com dentista. Juca, dentista, ia de fazenda a fazenda, com seu terrível boticão, e o ruído aterrorizante da broca que escareava as cáries e almas. Também havia o professor itinerante, mestre Almeida. Foi ele que ensinou as primeiras letras a meu irmão, Expedito na fazenda de José Esmério. A Fazenda ainda existe.
Nas eleições, era dia de consoada para os ricos; quartel para os eleitores pobres. Ofereciam comida a eles e exigiam votos. Punham as cédulas dos políticos a quem deviam votar, nos seus bolsos e eles as punham na urna. O coronelismo em ação. Por incrível que possa parecer, alguns políticos, daqueles tempos, empobreciam, quebravam com a política. Ah, como as coisas mudam! Não é de meu tempo, mas ainda vi listas de eleitores. Só de homens, pois as mulheres não votavam.
As pessoas ricas (principalmente na hora da morte) doavam casas, terrenos, bois, leitoas e dinheiro para o patrimônio da Igreja. Tudo contabilizado honestamente pelo fabriqueiro. Os padres que conheci, nem sempre foram primores em bons costumes. Um deles bebia demais, eu o vi bêbado, em casa de meu avô, que fabricava cachaça e outros subprodutos de cana; outro padre, tinha uma namorada e escreveu pra ela um bilhete: Amor sem beijo é igual doce sem queijo. Lembro-me do padre de Antônio José de Paiva, primo de meu pai, mais chegado a negócios e ao revólver. Aliás, no seu vicariato, pouco registrou nos livros da paróquia. Parece que não ocorreram nascimentos, casamentos e/ou mortes no período em que ele foi vigário colado/designado. Minha gente! Rosário fez 200 anos em 2015. Estou seguro de que por esta Vila passaram muitos padres bons e santos, eu não os cito por não saber seus nomes. Assim, me concentrei naqueles mais folclóricos e no período de 1934-1954.
Nos sermões, os padres invariavelmente desancavam os blasfemos, judeus, ateus, maçons e espíritas; heréticos, em geral. Dos maçons diziam que para entrar na maçonaria tinha-se que montar um bode preto. Minha mãe falava que não havia mais demônios soltos, fazendo possessos, porque os espíritas os prendiam nas tendas espíritas. De certa forma, um elogio arrevesado aos seguidores da doutrina de Kardec. Vez por outra, os heréticos eram demonizados, mas nós nem sabíamos o que era ser herético. Em toda missa rezava-se para conversão dos judeus, segundo preceito das Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia (1717).
Os negros/pretos, geralmente pobres, humildes, moravam num morro que se empinava ao lado da rua Principal (as vielas eram de chão, as ruas do arraial também eram). As choças dos negros eram muito pobres mesmo. Minha mãe os visitava e tinha grandes amizades com eles (comadrice). Dizem que fui amamentado por sete negras, SOBREVIVI, graças a elas. Por isso estou aqui, hoje, escrevendo estas recordações.
Lembro-me de uma família, acho que do escrivão ou Juiz de Paz, seu Camilinho e Doninha. Ele, muito agradável; ela, não. Esta família, quando se mudou para Juiz de Fora, adotou, em bloco, a doutrina espírita e foi, portanto, deixada de lado, excluída do convívio amável dos rosarenses por algum tempo, como diferentes e esquisitos. Depois, voltou ao normal e a família bem vista por todos. Eram muito simpáticos.
No arraial, poucas casas havia de dois ou mais pavimentos, a maioria era de um só; umas muito bem pintadas, outras só emboçadas, outras com pisos de chão batido, umas forradas; outras, não. Enfim, choupanas, casinhas, casas, casarões e sobrados. A mansão do Argentino era belíssima e sobranceira no alto da colina. E também ao alto ficava a casa paroquial. A casa do meu avô, muito grande, ficava quase ao lado da Igreja Matriz, na praça do mesmo nome. Nas festas, principalmente nas dedicadas a N. S.ra do Rosário, a família inteira se mudava para o arraial (os mais ricos tinham casa na roça e no arraial). Defronte à Igreja, ficava o cruzeiro; mais abaixo, o coreto e, quase na rua, o chafariz que jorrava água límpida e pura, continuadamente. Naquelas festas, minha mãe, em solteira, era filha de Maria e meu pai, Congregado Mariano, possivelmente começaram o namoro numa dessas festas. Na procissão, meu pai vestia a opa roxa e carregava, com outros marianos o andor de N. S.ra. Fechando a procissão, vinha a banda de música, o fogueteiro e os garotos, serelepes. Eu, quando criança, gostava de acompanhar o músico dos pratos, porém, o som do tarol exercia grande fascínio sobre mim. Para iniciar uma tocata, o bumbo bumbava, o tarolzeiro percutia as baquetas no couro esticado sob tirantes vai catá, tá, tá, uma descarga elétrica percorria meu espinhaço. E todos tocavam ou percutiam uníssonos, os respectivos instrumentos músicos. Iniciavam o Queremos Deus ou outro hino.
As manifestações profanas seguiam lado a lado com a religiosa (missas, prédicas, procissões, confissões, comunhões, adoração do Santíssimo etc.). A festa laica e lúdica era muito animada: bailes, sorteios, barraquinhas de salgados e doces; jogo das argolinhas; mas, sucesso era a barraca do coelhinho, onde se vendiam bilhetes e após a venda de todos, soltava-se um coelho que corria para uma casinha numerada. O portador do bilhete ganhava o prêmio. Importante era o vaivém footing de moças e rapazes; muitos namoricos se iniciaram; uns e outros deram casamentos. O jogo de azar campeava: marimbo, vinte e um, víspora, roleta paulista. Vi pobres lavradores perderem rapidamente, seu dinheiro suado (ganho no cabo da enxada e foice), no jogo da famigerada vermelhinha. O ponto alto era no fim da festa, a queima dos fogos, quando o povo se reunia no adro, à meia-noite, para jogar buscapés, ver as explosões coloridas, os rojões, a chuva de estrelinhas, as rodas girantes, subindo aos céus, o desdobrar do ícone da padroeira: N. S.ra , envolta de luz.
Não consigo precisar quando a luz elétrica iluminou as noites de Rosário. Parece-me, se não me falha a memória, que a pequena usina aproveitava as águas da cachoeira de Marieta, já citada. A rede de esgoto, acho eu que ainda não chegou, ou já?
Francisco Manoel de Almeida, nome completo de meu avô, era um excelente carpinteiro ou marceneiro, fabricava carros de boi, cangas, canzis e demais apetrechos. E fazia serviços de seleiro com muita competência. Gostava demais de plantar árvores frutíferas. Como se aliviava em pontos diferentes, foi o maior semeador de jabuticabas, frutas de conde, ameixas e goiabas do pomar. Quando saía com um cacumbu na mão, certamente iria semear. Porém, abacates e pêssegos ele os semeava de outra maneira...
A rapaziada invariavelmente se reunia no coreto da igreja pra conversar banalidades, jogar bisca de três, de rela, de nove e eventualmente combinar algum batuque ou baile. Não havia perigo de drogas, nem contravenções. No carnaval (entrudo estava fora de moda) divertiam-se a valer.
Minha mãe para ganhar alguns trocados, fazia quitandas e doces. Mandava tio Agostinho (o Minga) vendê-los no arraial. Ele vendia alguns doces e comia outros. Quando voltava a casa, apanhava uma coça, por ter comido as quitandas, e a vida continuava. Ele fugiu de casa em 1942, alistou-se no exército e foi à guerra. Voltou curvado de troféus e condecorações.
À noite, depois de comer angu (ou farinha torrada) com leite, e jogavam-se truco, bisca de três, de rela e de nove; dourada, douradão etc. Só me lembro das cartas zape (quatro de paus), espadia (ás de espadas), basto (ás de paus), dunga (dois de paus) e dama ou sota de ouros. Lembro-me minimamente de como eram esses jogos, também pouco me interessei por jogos de baralho. Não havendo jogos, o pessoal ajuntava-se em torno de um fogo, no chão da cozinha, para ouvir estórias dos mais velhos. Meu avô foi excelente contador de estórias. Nunca deixava de contar as da Onça e o cabrito; Pequeno polegar, Joãozinho e Maria; A princesa dos cabelos de ouro, as preferidas minhas. Diziam que meu avô era muito preguiçoso.
Meu pai, muito pobre joeirava de sol a sol (às vezes à luz da lua) na roça. À noite, era barbeiro e o vejo ainda hoje ao clarão do carbureto, a chama brilhante e o pessoal esperando a vez de fazer o cabelo e de se barbear. Vida dura para todos. Depois, meu pai comprou vaquinhas, bezerros, começou a negociar gado, tornou-se boiadeiro, o que era subir degraus na escala social a que pertencia. Ele arranjou encrenca com um valentão do lugar. Um dia o valente invadiu nossa casa, com revolver na mão, disposto a matá-lo, meu pai o esperava e lhe deu uma surra histórica, com pau-mulato. Para evitar derramamento de sangue, prudentemente mudou. O arraial de Rosário ficou eternamente na minha imaginação. Voltei algumas vezes, mas não era a mesma coisa. Pessoas envelhecem e morrem, outras ocupam a vaga, casas caem e constroem-se outras, mas a terra é a mesma. Uns lugares decaem, outros progridem, tal é a lei da mudança, como prolata Camões:
Mudam-se os tempos,
Mudam-se as vontades,
Muda-se o ser,
Muda-se a confiança;
Todo mundo é composto de mudança,
Tomando sempre novas qualidades.
E este foi o arraial de Rosário da minha infância e de Nossa Senhora do Rosário, a padroeira do lugar, que sempre protege seus filhos e os acolhe em seus braços, nos momentos dramáticos e aflitivos da vida.
Ó Maria, concebida sem pecado, rogai por nós!
........................................................................................................................
Descobri, na internet, novidades sobre Rosário (Rosário de hoje) que me encantaram. Como Fênix, Rosário renasce das cinzas. Vou transcrever parte que reza assim:
1) Foi revitalizada a praça Helvécio Ribeiro de Oliveira... [Fiquei sabendo que trocaram o nome da antiga praça da Matriz], e meu primo homenageado post mortem;
2) Há também uma nova praça poliesportiva: Antônio Vicente de Oliveira;
3) Foi inaugurado um novo poço artesiano;
4) Há uma escolinha Buieié;
5) Uma rua com o nome de Carlos Lulu de Oliveira (Seria a antiga rua Principal?); e
6) Uma Escola Municipal Helena Antipoff.
É o que pude ler dia 18/2/2008, no site www.pjf.mg.gov.br/noticias
Vista antiga de Rosário. Embaixo, o Largo da Matriz. A terceira casa, à direita, debaixo para cima, era do meu avô. Abri mão da herança para meu tio Agostinho Almeida, pintar a Igreja de Nossa Senhora do Rosário.
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