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Sobrevivi
Sobrevivi
Asséde Oliveira
Nasci em 1934, portanto, no tempo do atraso. A escravidão terminara em 1888, mas ainda tínhamos em nossa companhia, digo na companhia de minha bisavó, a Dona (ANA), uma ex-escrava e um ex-escravo, que preferiram ficar na fazenda a irem embora, sem destino E SEM COMIDA NEM TRABALHO: não tinham onde caírem mortos. Me lembro deles como névoa que vai dissipando Sombras de um passado distante. Pois bem, sendo eu uma criança, lembro-me perfeitamente que engatinhava arrastando um sabugo de milho. Não me recordo quando me tornei plenamente bípede. A Fazenda (Velha), que morávamos, (de favor?), pertencia a minha bisavó: Dona e era chamada fazenda do Morro Alto. Toda esburacada, onde o vento entrava na sala e saia na cozinha. Meu pai era diarista/roceiro, e trabalhava a dia para os fazendeiros da região, na enxada, portanto, era enchadachim, no vocabulário de Guimarães Rosa. À noite, meu pai capinava à luz do luar, a própria plantação. Isto não vi: Me contaram. Nos feriados, sábados e domingos, ele trabalhava como barbeiro, à noite e à luz de lampião de carbureto. Isto eu vi. Certa feita, abri a mala de ferramentas de barbeiro do velho e peguei da navalha e cortei um gravetinho, com a dita. Quando me viram, tomaram-me a navalha, deram-me palmadas e, um tio trabalhou o dia inteiro afiando-a para eliminar o dente que nela fiz. Foi um desastre a minha “arte”. Mais tarde, disseram-me que meu pai era muito bravo e possivelmente bateria em mim, se não afiassem a navalha a tempo. Digo que a navalha era da marca Solingem, alemã, portanto. Aliás, tudo no Brasil varonil vinha do estrangeiro: canivete, Corneta; machado, Collins; enxada, Jacaré. Só fabricávamos ferraduras. No tempo do atraso, não tínhamos brinquedos, nosso divertimento era fazer pequenos furos nos chuchus e neles inserir pimenta e, a seguir, jogá-los aos porcos, que após os comerem, saiam grunhindo pelo chiqueiro ou pocilga como quiserem. Outro brinquedo nosso era perfurar gomos de bambu e fazer esguichos sobre uns e outros. Brincávamos muito com sabugo de milho. No tempo do atraso, nossa casa, quase uma fazendinha, não tinha banheiros, nem privada, nem água encanada. A água nós a pegávamos na bica, e à noite, enchíamos uma tina de água onde todos bebíamos no mesmo coité. Satisfazíamos nossas necessidades fisiológicas no urinol, e, pela manhã era levado pela ex-escrava, Sebastiana, que jogava no mato as fezes e urina. Naquele tempo, o do atraso, não conhecíamos ninguém, não passeávamos, não íamos ao arraial de Rosário, éramos bichos do mato. Lembro-me de que fui uma só vez assistir a um evento: Missões, em Rosário. O missionário, padre Gabriel cantava e nós também: “Jesus é meu, eu sou de Jesus, Jesus vai comigo, eu vou com Jesus.” Relembro que nossa luz noturna era lamparina com querosene. Segurávamos a lamparina pela asa e as levávamos a cada cômodo, onde íamos deitar ou pegar algo. A luz era fantasmagórica. No tempo do atraso, nós matávamos piolho com pó de Jonas; ou, catávamos com as mãos e passávamos o pente-fino o para tirar as lêndeas. No tempo do atraso, os nenéns eram enrolados em cueiros e ficavam duros como toco de pau.; só mexiam os olhos. Morríamos com nó nas tripas e barriga d’água; as mulheres morriam com febre puerperal e resguardo quebrado. O tifo campeava, lembro-me de que minha tia, Maria, se casou com Crispim Ribeiro Oliveira, primo de minha mãe Didi (Maria). Os noivos, meus tios, recém-casados nada possuíam em bens materiais (eram pobres como Jó). Eles saíram de nossa casa/fazendinha com um balaio pequenino, onde minha mãe pôs uma toalha de presente e uma dúzia de ovos. Mais nada ganharam. Só voltei a ver tia Maria quando sua filha, primogênita, Celinha (Maria Célia) nasceu. Tempos difíceis, mesmo. No tempo do atraso, as estradas só davam passagem para um carro de bois. Quando dois carros se cruzavam, era muito complicado. Às vezes, um tinha de retroceder, para o outro passar e se fosse numa “cava” (estrada entre barrancos), tudo ficaria muito dificultoso e, se de morro abaixo, mais problemático, ainda. Naquele tempo, o do atraso, meu pai começou a sair do buraco (miséria mesmo) e principiou a comprar bezerros, depois vacas e, mais tarde, juntou algum dinheiro: tornou-se boiadeiro. No tempo do atraso, em minha casa, as camas eram feitas de pau mulato postos paralelos sobre ganchos e forquilhas. Os colchões eram de palha de milho desfiadas, e havia imensa quantidade de pulgas, pernilongos e até percevejos a nos atormentarem. O carrapato estrela, em geral grandão, dava trabalho para arrancá-lo de nossa pele. Havia os famigerados bichos de pé, que eram pacientemente arrancados um a um em nossos dedos. Tempos, tempos, que não trazem saudades. Havia as doenças tratadas na base da ignorância: Coqueluche (tosse), sarampo, tifo, rubéola, caxumba, cachorro doido (raiva), em agosto. Picadas mortais de cobra cascavel, coral, jararacuçu e outras tudo curado com mezinhas. Inflamações, estrepadas, topadas saravam benzeduras e homeopatia (pulsatila, noz vômica, beladona, allium sativa e outras); e da flora: açafrão, folha de laranjeira, com azeite, chá de funcho e picão, erva-cidreira, mané-turé, etc. Torturava-se com cataplasmo/sinapismo: o famigerado emplastro de angu, azeite de mamona e mostarda para curar pneumonia e carnegão. Havia o famigerado lombrigueiro: a crença de que era necessário tomar o vermífugo nos meses sem a letra "R" ou na lua minguante. E, se possível, juntando os dois momentos. Pode-se imaginar que muitos adotavam o método sem qualquer comprovação científica e orientação profissional. Nós precisávamos tomar o vermífugo implacavelmente todos os anos, para nos protegermos dos áscaris lumbricoides, parasitas intestinais. Não posso esquecer da varíola que enchia o indivíduo de caroços e era quase sempre mortal. Para dor de cabeça, Melhoral, melhoral é melhor e não faz mal. Tratamentos repulsivos/invasivos, purgante de óleo rícino e cristeli/clister[1]. Para crescer cabelo: Óleo de Ovo Petrolovo, mostrava, no rótulo, um careca entrando por um lado do ovo e saindo cabeludo do outro lado. Emulsão de Scott, para deficiência de vitamina “D”. Para sarampo: Sal de Glauber e tampavam todas as frestas do quarto como se numa sauna e bebíamos água morna. Não peguei o tempo de atraso das sangrias, graças a Deus! Na verdade, não vivíamos sobrevivíamos aos tratamentos. Os dentes eram areados a carvão e os cariados eram cuidados pelo dentista, prático; as raízes dos dentes eram mortas com ácido fênico. Sabão era feito em casa com: Dequada[2], sebo, torresmo e soda cáustica. Benzedeiras curavam com rezas e ensalmos, as torções, contusões e quebrantos “Que que eu benzo?” “Vento virado”. = ventre virado, osso quebrado, nervo torcido, espinhela caída. Para tirar quebranto: com Deus te botaram, com quatro eu tiro, dois de são João Batista, dois de Jesus Cristo. Fulano de tal, assim como nasceste livre e são [sadio] desse olhado, quebrado os olhos malvados, assim vai-te para as ondas do mar.
As mulheres cavalgavam em silhão[3] SOBREVIVI para contar que naquele tempo o grande terror era pegar tuberculose, lepra e bouba. O indivíduo era isolado ou mandado para o hospício, para morrer como indigente. Urina doce (diabetes) também estigmatizava. Com 50 ou 60 anos o indivíduo era muito velho: quase um ancião. Os com oitenta ou mais anos eram prodígios da natureza.
[1] O clister, enema ou chuca, é um procedimento que consiste na colocação de um pequeno tubo pelo ânus, no qual é introduzida água ou alguma outra substância com o objetivo de lavar o intestino, sendo normalmente indicado nos casos de prisão de ventre, para aliviar o desconforto e facilitar a saída das fezes.
[2] água que infiltra na cinza. Enche-se um saco de aniagem ou um balaio, de cinzas, colocando-o sobre um suporte com um vasilhame embaixo. Na parte superior, abaulada, côncava põe-se água que lentamente, se infiltra nas cinzas, produzindo-se um líquido de cor de vinho tinto, isto é a dequada,(de coada) usada para cortar gordura e fazer o sabão.
[3] sela grande com estribo de um só lado e um arção semicircular, a cultura do tempo não permita que abrissem as penas para monta no arreio.
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Comentários
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Muito bom!
ResponderExcluirQue incríveis descrições dos detalhes, quanta riqueza em um texto . Obrigada
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