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Destaques

DEMONOLOGIA na visão dos ciganos

 DEMONOLOGIA na visão dos ciganos  Vamos abordar um assunto que até então estávamos deixando de fora, porque pensávamos que outros já o estudaram quase à exaustão. Porém, ao lermos estes tópicos no livro de Jean-Paul Clébert, in The Gypsies , constatamos que o tema citado era abordado antes, por outros, fracamente, superficialmente; decidimos por aqui, não nossa opinião, mas a de Clébert, porque ele é muito bom autor e deve ser considerado entre os melhores, em ciganologia. Ele, humildemente, pede licença, à página 145, para transcrever outro autor. Dr. Maxim Bing e nós fazemos o mesmo, portanto, o que se segue não é de nossa lavra, mas dos ciganólogos citados. Os erros e omissões ficam debitados a nossa dificuldade em traduzir castiçamente, para o português, a língua inglesa. Aos que quiserem conferir é só comprar o livro The Gypsies de Jean-Paul Clébert, Vista Books, London, 1973 e ler os títulos pertinentes. DEMONOLOGY (p. 145-147) Em tempos distantes, muito distantes, os ...

Talismã

Talismã

Asséde Paiva 



Ele era um homem sem medo. Juvenal adorava a redução carinhosa de seu nome para Juva. Muito forte e bravo como um touro em passagem própria. Sua musculatura saltava sob a roupa. Morava com o irmão e meu pai, quando o conheci. Eu tinha enorme admiração por ele, e ele correspondia me chamando carinhosamente de Ferrute. Até hoje não sei o porquê desse apelido. Exercia a profissão duríssima de amansador de burro xucro, concomitante com a de boiadeiro e de ferrador. Certa feita, ferrou cavalos de um grupo de ciganos, nada cobrou e chamaram-no vortako kamale (amigo do peito) sindrabô petulengro (bom moço, ferreiro). Juva gostava de cavalgar sua mula de estimação, não precisava se apoiar nos estribos, segurava no arção da sela (santo Antônio), e num galeio, montava. A mula era ensinada: dispensava amarração em esteio. Quando apeava, Juva punha o cabresto no chão, e, ela não saía do lugar. Ele sempre se fazia acompanhar pelos cães: Lobo e Feroz, que deitavam ao lado da mula e a vigiavam. Se Juva apontasse alguém e dissesse: “Inimigo aí”, os cães pulavam no indigitado. Os cães também eram ótimos condutores de boiada. Corria a lenda de que Juva não precisava de laço: segurava marruco pelos chifres, derrubava animais segurando-os pelo rabo. Juva, nas horas vagas, era lavrador, enchadachim vigoroso. Plantava milho, arroz, amendoim, batata e feijão. Não era alto: tinha apenas 1,68m, tez clara, queimada de sol, cabelos pretíssimos e ondulados. Morávamos ao lado da Estrada de Ferro Central do Brasil (EFCB), a uma légua além de onde Judas perdeu as botas. A vida de lavrador e boiadeiro é livre, sadia e com muito trabalho, como dizem: De sol a sol. No tempo desta história realista, Juva tinha 20 anos em plena mocidade, vendia saúde. Namorava uma adolescente formosa, residente em outro povoado, a mais ou menos cinco quilômetros do nosso. A menina amada chamava-se Helena de Abreu e Lima (Lena). Bela como uma fada, pele aveludada, rosto que pedia muitos beijos, lábios carnudos, ancas largas, cabelos lisos, louros e olhos azul-esmeralda. Da mesma altura de Juva, ela desabrochava para a vida aos 15 anos. Sonhava com o príncipe encantado, muito parecido com Juva. E a sua vida corria serena e feliz.

Outro personagem interessante neste causo é Augusto; para os íntimos, Gugu, irmão de Juva. Gugu queria viver uma vida de aventuras e, um dia, sem mais nem menos, fugiu de casa, engajou-se no exército e incorporado ao 12o RI (décimo segundo Regimento de Infantaria), em Juiz de Fora, como soldado raso. O recruta adorava o uniforme muito bem recortado e nos trinques. O rapaz era de poucas letras e 18 anos incompletos, Gugu, baixinho, tinha olhos vivos, sorridentes, bigodinho fino, cabelos pretos, partidos ao meio.  Charmoso e conquistador, muito comunicativo. Gugu se deu bem no exército, onde foi ordenança do comandante. Sorte ou azar dele, o Brasil entrou em guerra contra o Eixo: Alemanha, Itália e Japão, e com milhares de colegas de farda formaram a Força Expedicionária Brasileira (FEB). Embarcaram para a Itália pensando num piquenique: A Alemanha estava em retirada em todos os fronts. Não fazem parte desta história as peripécias da guerra. Juva, em viagem de volta, exalava alegria por não ter sido mais uma cruz no cemitério de Pistóia. Combateu em Fornovo, Monte Cassino, Monte Castelo, Castelnuovo e outros lugares. Namorou muitas “ragazzes” no Vale do rio Pó. Trouxe um retrato com duas moças nuas em seus ombros. Recebeu diploma de sangue (ferido em combate), bem como a cruz de combate. Voltou como herói, e a sorte de ex-combatente lhe garantiu o prêmio adicional de muitas garotas. Quem não queria ser a esposa de um ex-pracinha? E ele recitava a canção preferencial: “Tedesco levanta os braços; ajoelha e pede perdão; lá vai tiro de metralha; de bazuca e de canhão”. 

 Na verdade, Gugu não foi tão valente, pois quando estava na trincheira com outro soldado teve um ataque de pânico e disse para o colega: “Meu anjo da guarda está me mandando sair daqui” e escafedeu-se, deixando o outro só. No retorno ao Brasil reencontrou o soldado que abandonara, e foi gozado algumas vezes, ao passar por ele na calçada. Irritado e armado com um soco inglês, atingiu o ex-companheiro de farda e saiu correndo rua afora. Não foi ato de um guerreiro.

Apresento ao leitor ou leitora mais um personagem: oficial da marinha de guerra Almir Sacaroni, de sangue italiano, pele-vermelha, cabelos ruivos, encaracolados. Um soldado extremamente altivo, voluntarioso, tutor das irmãs, porque a mãe deles morrera cedo, e o pai, viúvo, casou-se novamente, deixando de lado os filhos do primeiro matrimônio. Sacaroni estava no vigor da juventude: 23 anos e gostava de ser o macho dominante. Não admitia contrariedade, se provocado, não fugia à luta. Com uniforme branco, quepe com âncora, era xodó das garotas.

Pois é, certa feita, os três estavam na mesma festa, no mesmo baile e todos eles queriam namorar Helena (ou Lena). Ela surfava no charme e, indecisa, não privilegiava nenhum. Seu coração estava dividido e sorria por ser tão requestada. Às vezes, dançando, alisava a nuca do seu parceiro com maior carinho. O do momento era Gugu; os preteridos, Juva e Almir. Eles estavam furiosos, não gostavam nada do que acontecia: Morriam de ciúmes, com sorrisos amarelos. Isso não acabaria bem... estava escrito: Conta de três o diabo fez. 

Leninha estava nas nuvens e não avaliava a tempestade a caminho. Deslizava do alto de sua sandália dourada pelo salão, enquanto “seu” Oswaldo, no acordeon, tocava o bolero “Dos Almas”: Dos almas en el mundo había  unido Dios dos almas que se amaban eso éramos tú e yo.

 Leninha roçou, talvez por provocação, seu brinco de ouro no rosto em Gugu. Juva, irritado com a provocação, saiu do baile muito revoltado e foi arrefecer sua raiva e decepção esmurrando uma amendoeira, no adro da igreja. Tudo se deu ao romper da alvorada.  

O soldado Almir saiu também do baile e se dirigiu ao boteco do Pinduca. Recostado no balcão, degustava uma cerveja e sua cólera, porque perdera o benquerer para Gugu, simples soldado de infantaria. Instantes depois, Juva entrou no mesmo botequim e pediu uma talagada de cachaça. “Dois dedos”, disse brincando, mostrando o polegar e o indicador, ou seja, um copo.

Almir ouviu e provocou com ironia:

–– Neste lugar só tem cachaceiro!

Juva nunca levava desaforo para casa. Sacou do punhal e tentou apunhalar Almir. Não conseguiu, porque havia puxado a faca com tal violência que lâmina e bainha vieram juntas. Sorte de Almir, porque era homem morto. Entretanto, engalfinharam-se e rolaram nas pedras da rua.

Apareceram amigos, parentes e os deixa-disso, para tentarem separar os contendores. Foi tarefa muito difícil, tal a raiva dos brigões. Trocavam socos, pontapés, rabo de arraia, gravata, estrangulamento etc. O baile acabou. Pessoas corriam para todos os lados. Lena, que sabia ser a causa primária do evento, saiu correndo, perdendo alguns adornos. Ela refugiou-se em casa, trêmula, sendo amparada e consolada pelos pais, os Abreu e Lima.

Finalmente, “seu” Neném, o dono do armazém local, e do salão de baile, homem muito forte e destemido, conseguiu separar os briguentos, mas levou um safanão que o derrubou na calçada. Juva, o autor da façanha, resolveu cessar a luta corpo a corpo. Apanhou algo brilhante no chão, pôs no bolso, montou na besta, esporeou-a partiu, soltando fogo pelas ventas. E arrematou, sendo escutado por todos:

–– Eu voltarei para acabar contigo, Almir.

Após o galope desenfreado, chegou à casa, armou-se com a Luger  que o irmão trouxera da guerra, como troféu dos alemães, e se propunha a cavalgar de volta.

Gugu, recém-chegado, perguntou:

–– Que é isso, Juva? Irmão, o que vai fazer?

Juva apontou-lhe o indicador ao nariz e disse-lhe simplesmente, soturnamente, com toda  raiva contida:

–– Você é “irmão urso”, me afrontou com minha Lena. Vou acabar com a raça dos Sacaroni, e desaparecer! 

E Juva partiu com intenção de voltar ao arraial e terminar a briga na bala. Porém, na metade da viagem de retorno, avistou o carro de Almir. Reconheceram-se no ato. Almir dirigiu o carro em zigue-zague pra cima de Juva, que pressentiu o perigo, cutucou os flancos da besta, ela pulou o vale paralelo à estrada, salvando ambos de serem atropelados e mortos. Mas Almir não escapou do tiro: Juva fuzilou o auto por detrás. O projétil atravessou a carroçaria, bancos e o braço de Amir. 

O carro capotou com as rodas para ar, em estrambótica posição, tal e qual tartaruga patética, em decúbito dorsal. 

Juva não esperou pra ver o resultado do tiro. Assustado, fugiu para o sitio do Azevedo, do coronel Zé Tenente, e, de lá tomou ônibus para os Caramonha, terra de gente brava. Depois,  se mudou  para o lugarejo chamado Divino de Ubá (hoje Divinésia)  e tornou-se boiadeiro; ganhou muito dinheiro, comprou um sítio e fez a casinha dos sonhos, para aninhar-se com Lena,  o amor da sua vida. 

Quatro anos após o incidente relatado, voltou para buscar Leninha.  Ela não o esperou tanto tempo. Sempre bela e mais cortejada do que nunca, fugiu com Almir para lugar incerto e não sabido. Juva sentiu-se um bigorrilha, quis morrer de paixão e ódio; engoliu em seco a enorme frustração e voltou ao sítio, bom cabrito não berra. Pôs-se a trabalhar como mouro. Tornou-se ensimesmado, sisudo e conhecido como o homem que não ria. Carregava um bentinho do qual jamais se separava. Porém, não há dor eterna, ele queria ter um lar e se casou com moça, prendada, da vizinhança. Apesar dos pesares, foi um bom companheiro. 

Numa festa de Reis, Juva animado pela cachaça misturada com vermute, arrastou as asas para uma menina moça, gente do seu sangue. Lamentável episódio... Sua sobrinha não gostou e o delatou ao pai. Teria sido brincadeira, má interpretação ou síndrome de mau caráter? Nunca se saberá! O episódio cinzento e doloroso ficou na história do lugar.  O pai dela (irmão de Juva) não aceitou pacificamente o fato: Houve troca de desaforos, xingamentos. Então, deu-se um duelo de espingarda e revólver. Uma bala de Juva riçou a testa do oponente, as outras se perderam; mas os chumbos da espingarda pipocaram em Juva, e seu corpo, ficou marcado como peneira furada. Felizmente, não houve vítimas a lamentar. O tema sombrio tornou-se tabu, nunca mais foi mencionado. A família Juva foi duramente atingida no moral. É a consagração da história do vaso quebrado: Juntam-se os cacos, colam-se os pedaços, mas não é o mesmo vaso, jamais.

Juva estava bem situado, tinha cabedal no banco e algum prestígio entre os habitantes do povoado. Muito respeitado, para não dizer temido. Não há bem que sempre dure... sua propriedade confrontava em águas vertentes com outro sítio. No alto do morro, num capão de mato, marejava um olho d’água que mal dava para duas vacas beberem água ao mesmo tempo. Ele e o vizinho discutiram por causa da nascente... Um dizia: “O moirão/esteio é pra lá”; outro questionava: “É pra cá”. E não se entendiam quanto à derrota/divisa. Juva, explosivo, pavio curto, chamou o vizinho para o entrevero. Era mesmo turrão e invasivo. 

Pra quê o diabo trabalha? O homem desafiado era sonso, sangue de barata, embora brutamontes. Ele enfiou a viola no saco e ajustou um facinoroso ser, que tinha o trato com o cão, para fazer um trabalho sujo.

Cada qual tem seu dia. Juva voltava de Divino, e o céu prenunciava chuvarada, com trovoadas. Pingos de chuva caíram no chapéu, justamente quando passava ao lado da sua roça de milho. O destino do qual não se escapa, mandou-o que se abrigasse num pequenino rancho abandonado, distante cem metros da trilha.

Juva apeou e, levando a mula pelo cabresto, foi se aproximando devagar do rancho. O tocaieiro, à queima-roupa, puxou o gatilho: bam, bam, bam, bam, bam

Cinco tiros de carabina perfuraram o corpo de Juva.

Embora ferido mortalmente, cambaleante, tentou montar de novo. Não deu. A besta assustou-se, upou, e ele caiu. Lentamente o sangue, a terra e água se misturaram numa poça.

Assim morreu à traição Juva, um homem sem medo.

Mulher e filhos souberam que algo muito grave acontecera ao ouvirem o relincho da mula no curral e sem o cavaleiro.

Mais tarde, ao prepararem o corpo, viram que no patuá estava um brinco de ouro.


Me voliule samurri djibe movoin = Na vida só se tem um grande amor (lema cigano).

 

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