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DELÍRIOS
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Asséde Paiva
A porta do elevador abriu silenciosamente, no sexto andar, deslizou no leito de metal, como se fosse manteiga no pão. Só restavam o ascensorista e um passageiro.
— Fim de linha, não vai sair... senhor?
O homenzinho olhou-o, ausente e saiu empertigado. Tinha o cabelo liso, penteado em direção à testa, sequer acenou ao ascensorista, com sorriso indefinido fechou a porta e se foi. O homem ficou só no hall deserto. Estava ali a contragosto, diziam que estava doido, discordou e foi por conta própria consultar. Tinha ar solene. Embora fizesse muito calor, o jaquetão estava abotoado e assim parecia ser militar; a mão direita apoiava-se sobre o estômago, como o “grande Corso” aparece nos retratos. O homem teve instante de indecisão: Olhou pra lá, olhou pra cá; optou pelo corredor à esquerda. Caminhou lento, tenso, examinando cada porta, cada inscrição. Parou à porta onde estava registrado o nome do médico, a especialidade e, o número, 666, o que na cabeça dele era número ruim. “Não gosto deste número, é o número da besta.” Quis entrar, mas três latagões, impassíveis, obstruíam a porta de entrada. Eram como pedra, nenhum sinal de vida. Um deles tinha cigarro aceso, esquecido entre dedos e a brasa lhe queimando a mão. O recém-vindo forçou passagem, empurrando um dos três para o lado. Deu bom dia, genérico, aos demais pacientes. Alguns responderam; outros, o ignoraram solenemente. Um nem tirou os olhos da revista cheirando a mofo, que manuseava; outro inerte, tinha a cabeça pendida, e, da sua boca escorria baba; um morto apresentaria melhor face. Pessoas sem interesse, sentadas e de pé; todas com olhar distante. Então, o novato checou o relógio de parede, que marcava duas e trinta. Foi á janela e conferiu com grande relógio, na torre de supermercado também marcava duas e trinta. Puxou o Patek Philippe do bolsinho da calça, também duas e trinta; sorriu aprovador.
A sala era ampla, pintada de branco, com barra azul. Mesinha no centro, jarro etrusco e flores de plástico; catálogos e/ou revistas médicas desarranjadas ensebadas. No alto, um ventilador fingia que ventilava e suas pás desajustadas, enferrujadas faziam crac-crac-crac, ameaçando cair. Outra porta dava acesso ao gabinete médico. Enorme janela em frente a prédio fronteiro. Vez por outra, iniciavam conversação com ele, que não dava provimento e, o assunto morria.
O doutor, no consultório, tocava uma campainha chamando a atendente, que rápida e entrava. Logo, ouvia-se um urro, era eletrochoque, com certeza. E um “Jorge Washington” saía cambaleante...
O nosso herói olhava o relógio na parede: Duas e trinta. O tempo e espaço se confundiam estáveis. Raciocinou: “Ah, era isto, estava em um vórtice, numa dimensão diferente, onde o tempo-espaço se confundem”. O infeliz não atinou que os relógios coincidentemente estavam parados na mesma hora. Cerrou as pálpebras sonhadoramente. Enrolava eletroencefalograma, com mãos trêmulas.
Os seguranças que estavam de pé à porta de entrada, foram embora, pois eram também doentes. A sala foi se esvaziando: Maria das Dores; Joaquina Felismina; Mané Pedra; Joaquinzão e outros se foram, após darem seus urros. Os sons iam diminuindo. A recepcionista os chamava, longínquo, todos eles; um a um.
E o tempo passando, e os relógios marcando as mesmas horas: 2h30minutos.
Disse um dos clientes:
— Sei que estou muito doente, minha cabeça pesa uma tonelada, tenho medo de multidões, acho que vou morrer a qualquer instante; ontem, me agarrei num poste para não cair, tenho tremedeiras, sou homem dividido, um rádio pegando duas estações.
Era ao que parece, o único que se reconhecia-se doente naquela sala.
— Toc-toc-toc (nós dos dedos batendo na tampa da mesa), meu caso foi um acidente, toc-toc-toc, o ônibus que eu peguei deu um arranco toc-toc-toc e arrebentou meu estômago, o médico há de pô-lo no lugar.
No ambiente estavam lídimos representantes dos destroços da fauna humana.
O tempo realmente não passava, o lugar era especial. Nosso herói observou ainda que um dos finalistas era bom no tricô; outro, distraído, rasgava a revista, em vez de lê-la; aliás, as revistas estavam lastimáveis.
Ouviu-se um cliente dizer:
— Eu não estou doente, não sou doente, minha neta me pôs aqui, para o médico me receitar calmante. Ela quer meu dinheiro, eu só quero ir para minha fazenda, que os meus parentes estão tomando de mim.
Uma mulher franzina entrou na conversa:
— Eu também sou sozinha, só porque piquei umas cobertas com tesoura, acham que estou fora de mim, não estou; doidos são eles. Só porque vejo pessoas atravessando paredes lá em casa. Na verdade, são escravas, com grandes turbantes e saias rodadas, num vaivém danado, da sala para os quartos. Minha filha também as vê...
E outra:
— Olhem aqui, vocês acham que estou doente? Meu pessoal não quer que eu faça comida porque estou misturando fubá com sal; arroz com farinha e, afinal, só quero fazer um mingau. Comi também uns abacates verdes...
— Não podem fumar, disse a recepcionista, contrariada. Apontou para a parede onde o cartaz não fume bem evidente: um cigarro quebrado, cortado por traço vermelho.
— Eu sei! Estou chupando pirulito. O olhar perdido... e o sorriso amarelo.
O herói desta história continuava manuseando o eletro, por fim, à guisa de reclamação, disse à moça da recepção que o local parecia ajuntamento de malucos.
Ela respondeu, com deboche:
— Nada disso! São nervosos, deprimidos, esquizofrênicos, com pânico e outros problemas, que vêm consultar com o doutor Hermano Tegrethol. O doutor é muito competente, certo dará um jeito em todos. Você vai gostar dele. Todos nossos pacientes são “absolutamente sãos”.
Houve silêncio momentâneo. Uma mulher tremia sem cessar, tal junco ao vento; talvez com o mal de Parkinson. Ela entornou o cafezinho que se servira. Podia-se concluir que ninguém era doente, ou todos eram.
— Falam que sou psicótico... lamentava/reclamava um gorducho.
— Dizem que sou paranoico, adicionava outro, curvado pela idade.
— E um grandalhão:
–– Eu digo que escuto vozes, podem crer. Olhem! estou vendo o pessoal do outro prédio falando mal de mim, tenho ouvido sensível. Aquelas mulheres, lá na calçada, querem me namorar, eu sou bonitão mesmo...
— Falem baixo, meu ouvido não aguenta, ordenou a secretária.
Silêncio... até que conversas extravagantes recomeçaram. O senhor que entrara por último, nosso herói, estava inquieto. Agora, olhava constantemente seu relógio, o da parede e o do supermercado, os quais continuavam teimosamente marcando duas e trinta. “O tempo não passa nesta clínica”.
— Eu sou matemático, insinuou um paciente ao seu ouvido; fiz cálculos secretos e descobri a fórmula da Bomba Atômica.
Abriu um caderno cheio de pseudocontas, da primeira à última página. Meu nome é Einstein.
— Eu sou Alípio, sou perseguido pelo prefeito porque faço oposição, estava pensando dar um tiro na cabeça, e meus filhos me mandaram aqui para o doutor ver o que se pode fazer.
Nosso herói preferiu se ausentar mentalmente a continuar ouvir baboseiras dos candidatos a hóspedes de um hospício. Cerrou as pálpebras tentando cochilar. As horas passavam só os relógios firmes nas duas e trinta. O ruído cessou de vez.
Por fim, a moça chamou:
— Senhor Napoleão! Napoleão!
Ela separou claramente as sílabas: Na-po-lê-ão!
Silêncio. A moça levantou-se, foi ao homem, segurou-lhe o braço.
— Não está ouvindo? Está dormindo? É sua vez!
Ele parecia tão apático, distante, mesmo...
— O senhor é o último... cliente.
— Enganei a todos: Os últimos serão os primeiros! Eu sou Jesus...
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