Eles eram bons amigos... inseparáveis com certeza. Atendiam por Souza, Lima e Pedro. De seus nomes formaram o acrônimo Solipe e gostavam de ser chamados assim. Nunca se vira pessoas com personalidades tão diferentes; e, com recursos diferentes.
Souza era órfão de grande fazendeiro que ao falecer deixara aos filhos muitos bens, os quais eram administrados pelo irmão mais velho: Chiquinho.
Lima não estudava, não tinha profissão, mas andava com a carteira cheia de dinheiro.... mistério nunca resolvido.
Pedro, o mais pobre, carente, tinha a qualidade de jovem estudioso, amante da literatura de amor e terror. Além disso, era conselheiro. Ele apaziguava os ânimos, jamais um desacordo transformara em briga, em agressão, portanto, bem respeitado, e muito inteligente. Apresentava outra faceta: era bom ouvinte e todos lhe contavam suas mágoas. Ele até se intitulava Muro das Lamentações(1), porque era senciente.
Os três mosqueteiros, vamos chamá-los assim, quando se encontravam na cidade farreavam o tempo todo, inclusive bebiam umas cachaças: rabo de galo ou samba em Berlim: mistura de cachaça com Coca-Cola.
Souza e Pedro moravam em uma Pensão denominada Agassiz. Lima morava em arraial distante, mas frequentava a cidade semanalmente e procurava os amigos, na Pensão, para completarem o trio, que iria infernizar as jovens em toda a cidade, bem como dançar nas boates e bailes de formatura e frequentar clubes ou simplesmente passear: footing.
Souza era moreno de cabelos lisos e pretos. Tinha 1,69m de altura, trajava terno de linho S-120, idade da felicidade: 16 anos. Meninas não lhe faltavam, mas era tímido e ficava sem namorar; Lima tinha 1,75m era musculoso e gostava de trajes esportivos e, tinha namoradas aos montes. Pedro o mais introspectivo de todos, o mais pobre, usava rotineiramente calça caqui camisa cinza, uniforme do colégio onde estudava. Pela sua timidez não conseguia conquistar ninguém.
Esta é ligeira descrição dos amigos.
Indo mais a fundo, apesar de terem personalidades diferentes, os três amigos se complementavam. Souza, por exemplo, era bem-sucedido como bon-vivant, experiente, galante e sempre compartilhava sua esperteza e conhecimento com seus amigos. Lima, o boiadeirinho, era simples, e de poucas letras, mas com um coração enorme. Ele era o tipo de pessoa que estava disposto a fazer qualquer coisa por seus amigos. Além disso, era fumante inveterado. Costumava oferecer cigarro a Pedro dizendo: “Queima um!” De tanto queimar um, Pedro acabou se viciando no maldito fumo. Aí, passou a alimentar o vício às próprias custas. Pedro, apesar de ser o mais pobre do grupo, era uma pessoa muito determinada e queria ser um vencedor, construir a lenda pessoal. Hei de vencer, o seu lema.
Pedro nunca deixou a carência de recursos financeiros impedi-lo de alcançar seu objetivo: ser alguém, deixar de ser João-ninguém. Sua persistência e resiliência foram fundamentais para que conseguisse superar os obstáculos que se lhe antepuseram... e foram tantos, mas como dizem por aí: “Por caminhos ásperos se vai aos astros”.
Olhe para que o diabo trabalha: Pedro apaixonou-se pela irmã de Souza, mas foi defenestrado sem dó. Sorte dele, há males que vêm para bem. O evento nebuloso, constrangedor, afetou a amizade preexistente. Pedro seguiu em frente, segundo o lema: Atrás vem gente... Lamentável que a amizade entre Pedro e Souza ficou como vaso quebrado: nunca mais foi a mesma. Vaso quebrado pode ser colado, mas será sempre vaso quebrado.
Como na história de Alexandre Dumas: Os três mosqueteiros, vemos que está faltando o quarto mosqueteiro: D’Artagnan. Pois bem, aqui também há o quarto homem: I***, ou Mazinho. E o acrônimo passa a ser SOLIPEM.
Mazinho, um bom menino, era filho do italiano Aníbal Z***, com a primeira mulher, que falecera no parto.
Houve um ti-ti-ti entre Mazinho e Souza. Nunca ficou claro o porquê da desavença. Porém, em uma festa no arraial de Paula Lima, no final e, após os fogos de artifício, os outrora bons amigos se viram frente a frente e bravos. Houve bate-boca e, Lima, o mais explosivo, abriu a camisa e apareceu a aterradora silhueta de um trezoitão. Lima levou a mão à culatra, era a tragédia em andamento. Souza implorou: “Não faça isto!” e Lima obedeceu; o grupo, então, se desfez, em face da ganga na amizade, antes cristalina.
En passant, Souza perdeu quase todo dinheiro da herança, sobrou um tantinho que lhe possibilitou comprar um táxi e ganhar a vida honestamente.
Lima pegou, como se diz na Bíblia, o caminho fácil “Entrai pela porta estreita; porque larga é a porta, e espaçoso o caminho que conduz à perdição, e muitos são os que entram por ela.” (Mateus 7:13). Lima seguiu esta vereda, não por livre-arbítrio: o destino o quis. Meteu-se com entorpecentes e viveu como ave avoante. Lamentável sina. Maktub(2)!
Que pena! deplorava Pedro lamentando não ter ajudado o amigo, pois havia que cuidar da própria família. E Pedro nunca se esquecera de que Lima certa vez tirara a camisa que usava e lhe dera de presente. Este, sim, era amigo de fé, irmão camarada.
Lima jamais pedira ajuda a Pedro, que nunca soube que ele era desviante. Lima, um coração de ouro. De certa forma, aventureiro feliz e, vivia cercado de admiradoras: um conquistador contumaz.
Falemos mais sobre Mazinho: ele e Pedro moravam em Chapéu D’Uvas, lugarejo perto de Juiz de Fora. Como Mazinho era sacristão do pároco local, acharam que ele tinha vocação para padre e, o internaram no Seminário Diocesano. Foi um tiro n’água: Mazinho se rebelou e voltou para casa. O sacerdócio não era sua praia. “Seu” Aníbal, em segundas núpcias, ignorava os filhos que tivera com a primeira esposa. Eles foram criados e educados pela irmã mais velha, Áurea, também chamada carinhosamente Ainha. Mazinho juntou-se aos três mosqueteiros que, agora, eram quatro, como no romance de Dumas. Mazinho o menos aquinhoado (financeiramente falando), não participava de todas as festas, farras e arruaças, porém, tinha ótimas qualidades: solidário, boa-praça e trabalhador. Fumava cigarro de pior qualidade: Saratoga. Na época, já era aprendiz de mecânico de motores de combustão. Aliara-se ao grupo, por sinergia. Um presente de Deus.
Com as mudanças, andanças, problemas e vaivéns da vida, a amizade deles permanecera, mas com alguns senões. Após anos, cada um foi cuidar da própria vida, construir a sua saga.
E muita água passou por debaixo da ponte... Deu-se um encontro casual, onde fora mostrada a foto de Souza, Lima e Mazinho, sem Pedro. Ela era desbotada como cópia de jornal velho. Pedro absolutamente não aceitava sua ausência na foto. Tornou-se uma obsessão, onde quer que fosse, levava a foto; em casa, ela ficava na escrivaninha ao alcance dos seus olhos. À noite, uma lâmpada a iluminava com halo fosforescente, mágico. Pedro a olhava horas, em transe hipnótico.
Certa ocasião, Pedro após invocar santos, anjos. divindades e potestades, chorou muito e bebeu um litro de conhaque, a seguir, tomou uma cartela de psicotrópicos. “Apagou”. Fora o mais fraco de todos e, seus demônios assumiram o controle.
No dia seguinte, a empregada, assim que chegou, viu o patrão caído ao chão, com um retrato na mão. Ela o arrancou de suas mãos frias, enrijecidas e olhou-o atenta: “Estranho, parece que há mais um... na foto”
Era injusto Pedro não aparecer na foto e, para ela transmigrara.
Gostei!
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