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CONFITEOR [Eu confesso]

CONFITEOR  [Eu confesso] Asséde Paiva                 Nesta casinha pequenina, em Valadares, eu nasci em 1934 Cada qual no seu canto sofre seu tanto O segredo para lutar e vencer na vida ou na guerra ou na tristeza está no começo de toda a vida, de todo ser. Lutar, lutar, sangrar, mas vencer, vencer e vencer. Às vezes perder, mas viver e viver lutando sempre, sobrevivendo. Desistir nunca! O futuro será sempre um novo recomeço. As adversidades da vida nos ensinarão que a cada luta virá o aperfeiçoamento para uma grande vitória. (Jorge de Lima). “ E disse Deus a Moisés: Eu sou o que sou. ”  (Êxodo 3,14) Se alguém me perguntar: Que és? Direi: não sei! Eu queria pão e não podia comprar, hoje, posso comprar e não posso comer. Algo que escrevi há tempos: um conto? Não. Romance? Nem pensar! São reminiscências e fragmentos da minha vida. Lembranças que trago de minha terra e das gentes que convivi. Nada mirabolante. Na verdade, não tenho muito a...

O TOUREIRO

 O TOUREIRO

Asséde Paiva


Viver é perigoso

(Guimarães Rosa)


O poeta é como o toureiro. Precisa viver medindo forças com a morte ou não vive.

(João Cabral de Melo Neto)

Touro


Naquele tempo, em Paula Lima, um Distrito de Juiz de Fora, Zona da Mata, nada acontecia e a vida monótona escorria seus dias de sol ou de chuva. Uma vez por ano, no mês de Maria, havia a festa de Nossa Senhora de Assunção. Eram três dias de missas, leilões, bailes, foguetes, procissões e barracas. Também havia jogatina: víspora e roleta paulista. Uma vez, seu Minga Leite, parente próximo, jogador compulsivo, perdeu todo o dinheiro que tinha; daí, sacou do revólver e descarregou-o na banca de roleta paulista, como se ela fosse culpada pela sua falta de sorte. Seu João era pavio curto: por dê cá aquela palha ele arranjava confusão. Pois bem, eventualmente, muito raramente apareciam por lá ciganos e abarracavam uns dias, negociando tralhas, enquanto suas mulheres liam a buena dicha dos incautos. Depois de darem mantas nos ingênuos moradores do lugar, trocando/baldrocando cavalos sonsos por bestas boas e ainda levando troco. De uma lua para outra, levantavam acampamento e partiam para algum lugar mais próspero, para mais barganhas ou baldrocas (na língua disgramada deles). Desta vez, foi diferente: ficaram um pouco mais, construíram palco para teatro mambembe, trouxeram balancins, estande de tiro, e uma arena para touradas, mediante ingresso pago. A arena era muito simples, mas forte o bastante, para que os touros não se arremetessem contra ela. Eles, os ciganos, solicitaram aos fazendeiros locais que trouxessem os animais mais bravios para realização de touradas. Alguns atenderam às solicitações e cinco novilhos foram postos em um curral anexo à arena. Enquanto isto, faziam o que mais gostavam: baldrocas e venda de colares de “ouro”, que chamavam sonacai. Também consertavam tachos furados e vendiam panelas de cobre. As mulheres ciganas percorriam as casas lendo a “sorte” e, nisso eram muito boas. Num domingo de muito sol iniciou-se a tourada. A multidão de pagantes encheu a arquibancada. Homens, mulheres e crianças gesticulavam e gritavam, enquanto comiam seus sanduíches e pipocas. Ao meio-dia, dois toureiros ciganos adentravam na arena, e um terceiro abriu a porteira do curral dando liberdade ao touro, marruco, que entrou bufando e raspando a terra com as patas. O toureiro segurava um pano retangular, de cor vermelha, gesticulando à esquerda e direita, para provocar o animal. Não pensem em touradas na Espanha. Em nossa terra tudo era simples, rústico: não havia clarins, nem lenços acenando, nem vestes brilhantes, estiletes ou ferrões. Pois bem, o animal avançou e o toureiro, esperto, desguiou. O touro retornou ao ataque, e o toureiro subiu no cercado, escapando de bela chifrada. Isso aconteceu algumas vezes, até que o toureiro o distraiu, enquanto o segundo o agarrou pelos chifres, e o terceiro pelo rabo. Sacudido com violência, o touro caiu. Vitória. Palmas da plateia. O touro foi guiado de volta ao curral. Não havia espadim para matá-lo nem era esse o caso. Antes de soltar o segundo touro, os ciganos fizeram um desafio: “Quem queria bancar o toureiro mediante uma gratificação? e mostrar a coragem? Um jovem, candidato a herói a fim de agradar as mocinhas presentes, se propôs a tourear. Entrou na liça e esperou. Soltaram o segundo touro. Quem não pode com a mandinga não carrega patuá. Um dia é do caçador, outro do touro. O jovem aprendiz até se mostrou ágil em se livrar das aspas encapsuladas, mas a sorte não durou muito: ao tenta subir o cercado, caiu e foi espremido contra a cerca da arena. Deu um grito lancinante e desmaiou. O touro prosseguiu o massacre, esfregando com a cabeça e os chifres o rapaz, desmaiado contra a cerca, até que dois toureiros intervieram e conseguiram levar o touro ao curral. O infeliz candidato a toureador foi carregado para fora da arena. Alugaram o carro de José Lopes para levá-lo à Santa Casa, em Juiz de Fora. Aí, os ciganos que não dão ponto sem nó, desmaterializaram-se e seu João retorna à história. Ele, além de jogador, era mulherengo, digamos mau caráter. Certa feita, ele e um sargento, aposentado, da polícia militar de Belo Horizonte, estavam em disputa por uma leviana, ou melhor, “mulher de vida fácil”. O apelido dela era Lolota, doidivana. Os desafetos encontraram-se na venda de “sô” Lino e tiveram violenta discussão. O sargento não levava desaforo para casa e estava armado com uma .45, sacou a pistola e deu cinco tiros em seu João. Antes avisou: “Cê qué morrer, não é”? As balas entraram e saíram pelo corpo de seu João como que passeando e fizeram um estrago. Todos sabemos que pistola calibre 45 é para matar elefantes. Seu João teve sorte: não morreu. Foi levado para a mesma Santa Casa onde estava há meses o candidato a toureador. Por falta de vagas, ficaram provisórios na mesma UTI. Eu fui ver seu João, que, naquele dia, estava sofrendo um procedimento médico, com imensa agulha cravada nas costas, e o médico puxava o êmbolo, sugando sangue pisado dos seus pulmões. “Gente ruim não morre ou talvez tenha muita sorte”. Seu João sobreviveu. Enquanto convalescente, via e ouvia os médicos examinando o toureiro, sem muita esperança; ele, realmente agonizava. Tinha sonda nasogástrica; sonda na bexiga, donde escorria sangue coagulado e urina; ventilador pulmonar; eletrocardiógrafo e oxímetro no dedo. Os braços estavam engessados e a espinha quebrada. Imóvel, em decúbito dorsal permanente gemia dia e noite: um gemido arrastado, fundo, sofrido, impedindo o colega de dormir. Seu João ficou muito irritado, porque não conseguia uma pestana. No dia em que teve alta, aproveitou o momento a sós com toureiro, fez o sinal da cruz e cortou-lhe o tubo de oxigênio. Ah, maldade... ou piedade... ou caridade... 

Seu João tem contas a ajustar... A semeadura é livre, a colheita é obrigatória.

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