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Destaques

DEMONOLOGIA na visão dos ciganos

 DEMONOLOGIA na visão dos ciganos  Vamos abordar um assunto que até então estávamos deixando de fora, porque pensávamos que outros já o estudaram quase à exaustão. Porém, ao lermos estes tópicos no livro de Jean-Paul Clébert, in The Gypsies , constatamos que o tema citado era abordado antes, por outros, fracamente, superficialmente; decidimos por aqui, não nossa opinião, mas a de Clébert, porque ele é muito bom autor e deve ser considerado entre os melhores, em ciganologia. Ele, humildemente, pede licença, à página 145, para transcrever outro autor. Dr. Maxim Bing e nós fazemos o mesmo, portanto, o que se segue não é de nossa lavra, mas dos ciganólogos citados. Os erros e omissões ficam debitados a nossa dificuldade em traduzir castiçamente, para o português, a língua inglesa. Aos que quiserem conferir é só comprar o livro The Gypsies de Jean-Paul Clébert, Vista Books, London, 1973 e ler os títulos pertinentes. DEMONOLOGY (p. 145-147) Em tempos distantes, muito distantes, os ...

LÚCIFER. POBRE DIABO

 LÚCIFER. POBRE DIABO

Asséde Paiva


Lúcifer no trono


Ele, sentado no riquíssimo e monumental trono, na sala de audiências, percorria com olhos absortos todo aquele amplo espaço, outrora tão animado e, hoje inteiramente vazio e silencioso. Com os cotovelos firmemente apoiados nas braçadeiras, descansava o queixo sobre as mãos em concha, tristonho. No futuro, inspiraria O pensador, de Auguste Rodin. Ele, satã, prejulgava que algo estava errado. Pelo vão das janelas o sol brilhava. Logo onde! Onde deveriam imperar as trevas eternas e lagos de fogo perenes. O que acontecera com os relâmpagos, os trovões e as chuvas de granizo, de fogo ou ácidas? Pandemônio, a capital, não fazia jus ao nome. Era um mar em calmaria. Os gritos, os lamentos, os choros e o ranger de dentes dos condenados, que eram música para os ouvidos, haviam cessado. Algumas gargalhadas homéricas, distantes o irritaram profundamente. O cúmulo, o Averno se corrompia. Até o palácio estava se deteriorando. Urgia providências...

— Astaroth! O grito ecoou pelas cúpulas douradas do Inferno, reproduzindo-se interminavelmente: oth, oth, oth...

— Astaroth! oth, oth, oth... — repetiu o eco. Esperou, longamente, um, dois ou três minutos. Silêncio mortal. 

— Beliaaaal! al, al, al...

Pegou a trombeta e soprou violentamente, como se estivesse decretando o fim do mundo. O clangor reverberou pelos corredores, salões e abóbadas. Esperou no silêncio. Apanhou a enorme baqueta enchumaçada, com as duas mãos, bateu-a, seguidamente, no gongo e, o retumbo se repetiu indefinidamente: ong, ong, ong...

Ele, como chefe das areias gordas, seja do inferno sentia-se desprestigiado, desrespeitado e ignorado. A corte volatilizara-se, os íncubos e súcubos não apareciam para reverenciá-lo. Belfegor e Mamom há muito não eram vistos. 

O Tártaro estava abandonado num verdadeiro caos. A indisciplina e o desleixo campeavam. Faltava azeite no estoque e, o dos caldeirões estava aguado, com certeza superfaturado por um atravessador. A lenha, verde, fazia a fumaça dos infernos e pobre em caloria. Carvão de segunda qualidade, rico em cinzas. Respirava-se, razoavelmente bem; pois, o cheiro de enxofre quase desaparecera. Os tridentes estavam rombudos e enferrujados. Os ambientes, onde deveriam vigorar a escuridão eterna, estavam mortiços. O inferno estava mais para uma reles pousada.

— Behemot! Asmodeu! Pazuzu!

O demo resolvera apelar para outros auxiliares. E nada. 

Depois de longa espera, segundo o tempo do Canhoto, acudiu Azael, que exercia o papel de secretário-substituto. Foi logo informando que Baalberith, o titular, ou estava de férias ou afastado para tratamento de saúde. 

— Onde andam vocês que não atendem os meus chamados? São uns irresponsáveis, meus domínios estão decadentes. Onde andará Magistellus, meu incubo preferido?

— Chefe, todos os nossos estão ocupadíssimos, trabalhando lá fora. Temos muitas moradas a visitar. 

— Impossível! somos 2. 665. 866. 746. 666. 

— Não, chefe, ao longo de milênios temos tido algumas defecções; perdemos 666 milhões. 

— O que! Enquanto tentamos os viventes, lá de fora, temos desertores em nossas hostes? Esta não!... 666 é o número da besta. Sim, sou uma besta quadrada, acontece traição no meu território e sou o último a saber.

— Chefe, além das nossas baixas, no Planeta Azul, que chamam Terra, onde os pecadores são muitos, precisamos ajudá-los, um pouco, a pecarem e, às vezes usamos uma legião por homem. Na verdade, precisamos de reforços suplementares para atender o nosso portfólio. Sugiro reduzir a guarda palaciana. 

O rei dos demônios pôs as mãos na cabeça, enquanto acariciava os chavelhos, silencioso. 

— Estou confuso, os homens, por natureza, são maus, por que precisamos dos nossos para seduzi-los? 

Formulou a questão mais para si mesmo do que para o secretário. 

Mas Azael ouviu e respondeu: 

— Chefe precisamos incentivar a humanidade a permanecer do mal, diversificar nas maldades, evitar recaídas ao bem, arrependimentos subitâneos. obsedar os bons, para induzi-los em erro... 

— Onde estão Belzebu, Lucífugo, Satanaquia, Fleurity, Sargatanas, Nesbiros e outros?

Azael engoliu em seco. Não podia responder que a turma caíra na farra com os homens, piores do que eles. Assim, ficou calado. Não queria ser dedo-duro. 

— Aonde foram minhas mulheres Aglarieth, Lilith e Naema? Elas estão me pondo chifres! Sequer me visitam na alcova. 

— As mulheres são muito espertas, — disse Azael evasivamente para não se comprometer. 

Lúcifer era polígamo. Além das consortes citadas tinha, legalmente, mais duas: Agarat e Moclat e, ainda dava umas escapadas com a grande cortesã Prosérpina, a arquidiaba, deusa do Inferno, com a qual mantinha um tórrido e tumultuado romance. 

"O Vampiro", hebdomadário respeitável, registrava com humor as estripulias e aventuras eróticas luciferianas. 

— O Inferno está esfriando. Mal posso sentar em meu trono sem usar almofada de amianto (aliás, tinha um furúnculo na parte pudibunda). Há evidentes sinais de relaxamento e, na Terra, as invocações a mim são ignoradas. Vamos fazer uma inspeção geral. 

Pegou um molho de chaves. Saiu acolitado por Azael, que lhe pôs uma capa nas costas para protegê-lo. O inferno estava frio mesmo.

Atravessaram um magnífico jardim, cuidado pelos condenados. Nele deveriam existir as plantas carnívoras, tóxicas e espinheiros, bem como animais repugnantes e insetos horríveis, mas, ao contrário, havia belíssimas rosas, cravos, lírios, margaridas, crisântemos; os cítricos abundavam. Foram, desde a saída do gabinete, acompanhados por um enxame de marimbondos, porque ele se intitulava o “Senhor das moscas”. 

Súbito, Lúcifer pulou de lado e gritou:

— Corta este avelós!

— Por quê? É tão bonito, tem espinhos agudos. — Contestou Azael. 

— Estúpido! Ele é também chamado coroa-de-cristo. Tenho alergia a este nome. 

Passaram sobre um regato de águas sulfurosas (não medicinais) e entraram no primeiro pavilhão. O lugar era bem bolado. Todo compartimentalizado, com ambientes especiais para o flagelo das almas, tais como: espetos, caldeirões de azeite, fornalhas para assar, água fervente para os sedentos, tambores de breu, frigoríficos, sofisticados aparelhos de tortura e complementos. Sofrimentos cruéis estavam previstos; só que nada funcionava bem. A qualidade de "vida", quer dizer da morte, havia melhorado substancialmente para os mortos, com grande decepção de Lúcifer. O depósito de ferramentas, um desastre, uma lástima, o descontrole: as prateleiras vazias, ganchos, tesouras, serras, pinças, tenazes, grelhas jogadas pelo chão; enferrujadas, quebradas, inutilizadas. Um monte de sucata, a ser comprada por uma siderúrgica. As colunas de aço, que deveriam estar quase no ponto de fusão onde as almas deveriam ser acorrentadas, estavam frias e oxidadas. Não se via uma corrente íntegra, nem candidatos ao suplício, nem carrascos; uma bagunça, enfim. Na repartição de aquecimento central os fornos estavam, em grande parte, desativados. Até fazia frio naquela ala. Ah! As forjas do outrora temido Pedro Botelho, eram uma balbúrdia. O tinhoso que se orgulhava do terror que causava aos enviados ao fogo do Inferno, estava desesperado de ver tanta incompetência. Por definição, as forjas do inferno  queimavam mil vezes mais do que as da Terra, mas Xaphan flanava por aí. Foi, no ato, demitido e, de passagem, Leonardo, o presidente dos sabás das feiticeiras, que fazia de tudo para não ser visto, levou um puxão de orelhas por faltar ao aquelarre (nota: Aquelarre é um termo procedente do basco Akelarre ("aker" = bode; "larre" = campo), que pode referir-se a: o Akelarre, reunião de bruxas.). 

No setor número sete, o grupo de Lúcifer aumentara muito, pois onde passavam, mais bajuladores aderiam à entourage. 

— Onde está aquela linda fonte de ácido sulfúrico?... E o pântano de águas salobras? perguntou o demo.

— Secaram — respondeu Leviatã, o feitor. 

— A propósito, ó digníssimo! — interrompeu Adramelech, o grande chanceler, adiantando-se:  — Tenho aqui este documento, para lhe entregar há dez dias. Entretanto, estava muito ocupado com a burocracia. 

Lúcifer arrancou-lhe o envelope das mãos, e leu:

Nós, abaixo-assinados, os mártires que, por especial concessão do supremo Criador, vimos periodicamente a este local para assistir aos flagelos dos condenados ao fogo do inferno, informamos que, suspenderemos nossas visitas, em face dos tormentos não mais ocorrerem, porque os horários programados não são cumpridos e há superlotação.

Foi o que faltava para a explosão de ira: Lúcifer soltava fogo pelas ventas, chispas nos olhos, vapores deletérios pela boca e fumacinhas pelos ouvidos. Olhou de viés para o desastrado Adramelech. 

— Patife! Você me criou um incidente diplomático com o pessoal do Empíreo. — Deu-lhe um tabefe, no pé do ouvido, que o mandou a dez passos de distância. Adramelech moscou-se, isto é, evaporou-se nas chamas.

O diabo sentiu-se mais calmo. Passou a inspecionar o oitavo galpão, o dos condenados especiais. Almas danadas, lídimas representantes da maldade humana, ali estavam: Átila, rei dos hunos, que brincava com as cabeças de alguns decapitados; um profeta e um faraó discutiam a técnica de separação das águas do mar; os conquistadores espanhóis continuavam afiando as espadas nos incas, astecas e maias. Num grande salão, alguns vendiam perdão dos pecados, incentivavam guerras, abençoavam canhões. Calígula, Nero, Cômodo, Caracala, césares, se divertiam e rememorar atrocidades que praticaram quando reinavam. Os Bórgia ofereciam aquatofana e punhais. Torquemada e demais inquisidores usufruíam dos suplícios light. Na suíte, atapetada, luxuosa, habitava Adão, aquele que, por trapalhadas de Eva, fora expulso do Paraíso. Deus cassou-lhe a mordomia. Entretanto, Adão não estava infeliz, gozava da companhia da cara-metade, Eva e compraziam em comer maçãs, insaciáveis. Por deferência especial do maioral, não havia diabretes para importuná-los. Nas termas, Messalina, Teodora, Cleópatra e Lucrécia combinavam um carna valis.

Todos os hóspedes do inferno continuavam praticando as mesmas ações e maldades que os levaram à condenação. Como estavam as coisas, não era castigo e, sim, promoção, com restrição.

Notando que algumas celas estavam superlotadas, pois, quem levantava o braço não podia abaixá-lo, tal o aperto, elogiou:

— Parabéns, aqueles sofrem sufocação do povo carioca!

— É excesso de políticos corruptos estão dançando funk. Nosso Oponente, O lá de cima, com a mania de chamar muitos e escolher poucos... 99% estão aqui. Breve, construiremos anexo só para a turma da corrupção.

— Reforça nossas legiões para controle dos velhacos. Que raça miserável, desprezível! Cuidado com eles, são falsos e capazes de perverterem e corromperem seiscentos mil diabos. Ponha Cérbero na entrada da cela.

E continuou o exame das instalações de Hades ou de Geena, onde nada se viu para melhorar o humor do Chefe. O rio Aqueronte, que deveria ter as águas putrefatas, estava mais límpido que muitos rios na Terra, dava para ver peixes nadando em filas sinuosas.

Lúcifer, irritadíssimo, não se conformava com tanta impudência, interrompeu a fiscalização no nono pavilhão, porque parecia uma repartição pública, ninguém o reconhecera, exigiram-lhe que se identificasse, pois estava sem o crachá. Retornou à sala do trono, onde preparou um decreto. Chamou Alastor, o executor das decisões infernais.

— Vou para a crosta terrestre buscar almas. Resolvi promulgar uma lei para viger agora. Trata-se da reorganização geral do Tártaro. Você tem carta-branca pra desenhar novo organograma. Pode admitir, exonerar, transferir, afastar qualquer elemento inferior, ou da alta administração.

— Mestre, está sendo muito rigoroso. — Ousou argumentar Alastor.

— Certo, estou. Em 9.720 anos, jamais vi tanta desídia e incompetência. Aja implacavelmente. Convoque Múlciber, o arquiteto, para reformar o palácio e criar novas dependências. Enquanto isto, vou me divertir. Há muito ouço alguns desaforos vindos d a casca terrestre: "Corisco! diacho! demo! Capeta! Se ele aparecer vamos cruzar os bigodes" Aceito a provocação, vou comparecer e dar lição neles. 

— Digníssimo, deixa que eu resolvo. Lá fora, o assunto é perfunctório, grave é a crise aqui. — Obtemperou Verdelet, o mestre de cerimônias e encarregado do transporte das bruxas ao sabá.

— Poderoso mandatário! — adicionou Verrine, diabrete bajulador: — Permita-me, afinal tenho know-how de opressão/possessão. Adoro infestação.

— Indefiro! É ponto de honra. Azael, assuma a governadoria de Pandemônio, não sei se vou demorar mais do que planejo. Sei que estou dando mau exemplo, afastando-me do local de trabalho em momento de crise. Conto com todos os membros de nossa hierarquia dos infernos.

Ouviu-se um estrondo, uma fumaceira se levantou, forte cheiro de enxofre se fez sentir. Lúcifer desapareceu. Voou através do vulcão Vesúvio (ou Etna), pousou noutro continente, numa moita de bambus gigantes, na qual fez um fogaréu, um estrago total. Saiu todo chamuscado e arranhado; adotou o heterônimo Legião. Estava pronto para atanazar os terráqueos.

Ele se deu mal na Terra Brasilis, pois, foi desacreditado pelos pretos-velhos, e recebeu dezenas de apelidos pejorativos, principalmente nos xingamentos: canhoto, coisa-ruim, sujo, capiroto, cão, capeta, arrenegado, demo, satanás, cornudo, duba-duba e quejandos. Suprema humilhação quando lhe puseram numa garrafa e o chamaram Cramulhão.

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[.....]. No fim dos tempos, Lúcifer reassumiria a função de querubim, o Portador da Luz.



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