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Destaques

DEMONOLOGIA na visão dos ciganos

 DEMONOLOGIA na visão dos ciganos  Vamos abordar um assunto que até então estávamos deixando de fora, porque pensávamos que outros já o estudaram quase à exaustão. Porém, ao lermos estes tópicos no livro de Jean-Paul Clébert, in The Gypsies , constatamos que o tema citado era abordado antes, por outros, fracamente, superficialmente; decidimos por aqui, não nossa opinião, mas a de Clébert, porque ele é muito bom autor e deve ser considerado entre os melhores, em ciganologia. Ele, humildemente, pede licença, à página 145, para transcrever outro autor. Dr. Maxim Bing e nós fazemos o mesmo, portanto, o que se segue não é de nossa lavra, mas dos ciganólogos citados. Os erros e omissões ficam debitados a nossa dificuldade em traduzir castiçamente, para o português, a língua inglesa. Aos que quiserem conferir é só comprar o livro The Gypsies de Jean-Paul Clébert, Vista Books, London, 1973 e ler os títulos pertinentes. DEMONOLOGY (p. 145-147) Em tempos distantes, muito distantes, os ...

Reminiscências

 Reminiscências





Aconteceu naquela noite

Horresco referens (Tremo ao contá-lo)

–– Cheguei??!!


Vou começar desde inhantes...


Gosto muito de ler... desde os sete aninhos. Por que gosto tanto?  Fácil, nós morávamos num lugarejo chamado Chapéu D’Uvas. E por lá passava a estrada de ferro: antiga Estrada de Ferro Central do Brasil (EFCB). Um empregado da ferrovia, guarda-chaves, apelidado Rio Novo, porque era originário daquela cidade, mas seu nome era Sebastião***, gostava muito de ler romances de Alexandre Dumas. Como eu tinha boas relações com ele, após a leitura ele me emprestava os livros. Em geral, eram grandes calhamaços, mas eu adorava os imensos volumes e traçava todos. Fiquei fã das histórias de capa e espada de Dumas. Certa feita, fui com minha mãe visitar parentes num lugarejo chamado Penido. Naquela família havia muitos meninos da minha idade, tendo um me chamado para soltar papagaio (pipa), ou jogar crica (bola de gude), recusei o convite, porque apanhara uma revista na mesinha da sala e estava lendo com sofreguidão uma história intitulada Um milhão de dólares para John L. destiny. Como a revista estava inutilizada pelo arrancar de páginas, não pude terminar a história. Muitos e muitos anos depois achei a revista com o título: Eu sei tudo, mas, já adulto, a história não teve o mesmo sabor do passado. Na minha vida, li milhares de livros e, agora, do alto da minha velhice, quase não leio mais. A idade me cansou, me derrotou; o cérebro já não metaboliza bem as palavras. Agora vou contar porque a leitura naquele tempo trouxe um grande problema para mim. Conforme enunciei, em nosso povoado passava a estrada de ferro e, naqueles tempos heroicos, era a única condução para irmos à cidade grande, no caso Juiz de Fora. Entre Chapéu e Juiz de Fora ficavam as estações: Dias Tavares, Benfica, Francisco Bernardino, Mariano Procópio. Pois bem, meu pai tirava leite e fazia queijos. No fim de semana levava os queijos para vendê-los a meu tio, Sebastião Leite, que os revendia, unitários ou fatiados, a fregueses, no seu armazém de secos e molhados, em Francisco Bernardino. Este título era novo: o anterior era Creosotagem[1]. Um dia o meu pai viajou e fui incumbido de levar os queijos, acondicionados em um malão, próprio para viagem, não para queijos. Era princípio de 1946 e eu tinha, então acabado de completar  12 anos. Peguei o trem: uma composição mista, com vários vagões de carga e apenas dois de passageiros; um, de primeira classe; outro, de segunda. Paguei a passagem de segunda classe, por ser a mais econômica. O trem passava de madrugada, eu me levantei às cinco da matina para não o perder. Às oito horas já havia chegado à venda de meu tio Sebastião, em Bernardino (assim falávamos). Feita a entrega e recebido o pagamento, havia que voltar, mas o trem de retorno a casa, só passava às dezoito horas. Com muito tempo disponível, resolvi dar uma chegada ao centro da cidade de Juiz de Fora. Peguei uma jardineira (pequeno ônibus) e desci na rua Halfeld. Naquele o dia, o cinema exibia, em vesperal, às 14 horas, no cine Glória, o filme seriado: O falcão do deserto. Depois do filme, dei uma visitada nas várias livrarias: Zappa; Charutaria Campos e Dias Cardoso. Fui, também, a um sebo, cujo nome está escondido nas brumas da memória. Na Charutaria Campos, eu babei por não poder comprar livros de Ponson Du Terrail, nem Os Miseráveis, de Victor Hugo. Todavia, vi um livro de Alexandre Dumas: O Castelo de Eppstein. Comprei-o por ser versão reduzida, condensada e barato. Fui correndo para a estação do trem, para começar a leitura do romance. Faltava pouco para chegar minha condução que, segundo informaram, estava a caminho de Matias Barbosa e no horário.  De fato, tudo deu certo: Embarquei às dezoito e trinta e, imediatamente, abri o livrinho e comecei empolgante leitura. Submergi no tema, entrei em quarta dimensão. Nesta hora, o mundo pode desabar sobre mim, que nada sinto. E o trem parava numa e noutra estação, eu sequer levantava os olhos, tão absorvido na história. O trem seguia o seu destino: Barbacena. Eu lendo... Cá e lá maus fados há. De repente, a locomotiva deu uma parada maior, eu levantei os olhos e raciocinei errado: num relâmpago pensei: fim de minha viagem. Cheguei não... Corri para a plataforma do vagão... e saltei. Piuííí, a locomotiva apitou e partiu. Vi as luzes do último vagão desaparecerem na curva num socavão. Para meu espanto e decepção, saltara na estação errada: estava em Dias Tavares, a quatorze quilômetros do meu lar. Eu, patético, segurava a imensa mala naquela estação deserta. “Que fazer?” pensei. “Que fria!” Hoje, eu diria: “Tô lascado, paguei mico!” pernoitar ao relento não era opção. Nem tudo está perdido. E decidi e pus--me a caminhar no leito da estrada, afora. Anoitecia rápido, e o invólucro da noite, sem luar me trouxe muito medo. Caminhei e caminhei. Ao passar perto de casas de trabalhadores de soca de linha, vários cachorros vieram latindo furiosamente em minha direção: vira-latas bravios. Olhei para um lado e para outro, estava sem arma para espantá-los. Meu recurso último foi derriçar minha mala em semicírculos sobre eles que, assustados, voltaram aos seus terreiros e sempre latindo. A essa altura eu tremia. Continuei a viagem. Meus Deus! Estava muito longe. Cheguei até a casa do feitor da linha e pedi pousada. Ele negou no ato, mas me disse que mais tarde passaria o rondante, e eu seguiria com ele. Sentei--me sobre material ferroviário: placas de apoio, pregos, parafusos, grampos, porcas, talas de junção e pedras, à beira da linha. Esperei. Felizmente, o rondante não demorou. Segui com ele. Boa pessoa, ele era.  Após meia hora de caminhada aproximamo-nos de uma casa humilde que ele me disse ser de sua mãe e que ia dar um alô. Eu o acompanhava sempre. A dona da casa me tratou muito bem e ainda fez um cafezinho para mim. No primeiro gole, senti uma formiga doceira na minha boca. Tomei goles generosos, tentando engoli-la, em vão, ela teimosamente aninhou sob minha língua. Café no buchinho, pé no caminho. Despedimo-nos da boa senhora e, na primeira moita de erva-cidreira que vi, cuspi a formiga. Reiniciamos a jornada. O rondante levava sua senha: um pedaço de pau com um número inscrito, para trocá-lo com o seu companheiro, quando se encontrassem. Notei que numa das mãos trazia a lanterna e noutra, um porrete de pau-mulato, bem encorpado, além de uma pistola na cintura. Numa curva enlodaçada, um bicho, ou lobisomem[2] de olhar sanguíneo pulou na direção do rondante. Ele negaceou, deu uma paulada e outra e outra. O bicho desviava e avançava. Então, o rondante puxou da garrucha .380 e atirou duas vezes no animal esquisito que, após estranho rosnado, pulou na matinha, ao lado da ferrovia. Por algum tempo, ouvimos o barulho do animal roçagar nas pequenas árvores e no capinzal. Suspirei ou suspiramos aliviados, mas eu estava arrepiado da cabeça aos pés. Daí em diante, ficamos em silêncio. Na metade de caminho, encontramos o outro rondante. Após os cumprimentos de praxe, trocaram senhas e eu continuei com o novo companheiro. Este, já meu conhecido, antigo morador em Chapéu D’Uvas. Às duas da manhã chegamos à estação de Chapéu. O rondante me deixou só. Talvez um quilômetro ou pouco mais me separava de minha casa. Eu tinha que passar pela caixa d’água, onde as máquinas a vapor abeberavam antes de subirem a Serra da Mantiqueira.


Meses antes acontecera grave acidente, uma tragédia. Lembro-me claramente: Era de tarde, eu passava perto da caixa d’água, enquanto o manobrista orientava o maquinista no vaivém de manobras, para desviar a composição para linha secundária e deixar alguns vagões para levar gado de corte. O manobrista tinha que mover o aparelho de controle manual (AMV) para mudar a agulha da linha e, assim desviar o vagão para via secundária. Ele o fez, mas se esqueceu de tirar o pé. Sua botina ficou agarrada entre a alma do trilho, a boleia e a agulha. Ele deitou-se o lado, sobre as pedras e, o vagão, em movimento, cortou-lhe as pernas acima dos joelhos. Eu vivi tudo isso. Foi horripilante: gritaria e pedidos de socorro. Pegaram o mutilado e o levaram à estação à espera do trem rápido (R-1), para interná-lo na Santa Casa, em Juiz de Fora. O R-1 parou, abriram um vagão de carga, e puseram o infeliz entre lençóis brancos, e, em minutos, eles ficaram vermelhos de sangue. Meu Deus! O homem morreu antes de chegar à cidade. Desde então, há quem diga que, em noites claras, um fantasma grita por socorro perto da caixa d’água: é a alma do manobreiro. E eu tinha que passar lá. Fiquei arrepiado da cabeça aos pés. Sem opção, corri e abaixei a cabeça, olhos fixos nos pés, sem olhar para os lados, para não ver o fantasma. Meus cabelos se arrepiaram, minha pele se enrugou. Cheguei a casa esbaforido. Ninguém ficou com pena de mim; chocados e indignados com minha história, me deram uma coça de relho como lição.


É... foi uma noite inesquecível.


Quem conta um conto, acrescenta um ponto. Tal é a lei.




[1] Processo de injetar creosoto (no caso, em dormentes da EFCB), para evitar ou retardar seu apodrecimento.

[2] Reza a lenda que se uma mulher tiver sete filhas, a sétima será bruxa; se forem sete filhos homens, o último será lobisomem.

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