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Destaques

DEMONOLOGIA na visão dos ciganos

 DEMONOLOGIA na visão dos ciganos  Vamos abordar um assunto que até então estávamos deixando de fora, porque pensávamos que outros já o estudaram quase à exaustão. Porém, ao lermos estes tópicos no livro de Jean-Paul Clébert, in The Gypsies , constatamos que o tema citado era abordado antes, por outros, fracamente, superficialmente; decidimos por aqui, não nossa opinião, mas a de Clébert, porque ele é muito bom autor e deve ser considerado entre os melhores, em ciganologia. Ele, humildemente, pede licença, à página 145, para transcrever outro autor. Dr. Maxim Bing e nós fazemos o mesmo, portanto, o que se segue não é de nossa lavra, mas dos ciganólogos citados. Os erros e omissões ficam debitados a nossa dificuldade em traduzir castiçamente, para o português, a língua inglesa. Aos que quiserem conferir é só comprar o livro The Gypsies de Jean-Paul Clébert, Vista Books, London, 1973 e ler os títulos pertinentes. DEMONOLOGY (p. 145-147) Em tempos distantes, muito distantes, os ...

Alma Cigana

Alma Cigana

Vincent Van Gogh



Apresentação


O honroso convite para fazer a apresentação desta obra do escritor Asséde Paiva encheu-me de felicidade. Saboreei cada pedacinho da Alma Cigana, a princípio, preocupada em mergulhar nesse universo especial e na riqueza do enredo; mas, aos poucos, fui me familiarizando com a profundidade da sua visão de mundo. Aí viajei com ele pelos caminhos da imaginação e peguei carona no seu saber, trazendo para dentro de mim o deslumbramento da história extraordinária.

Convido vocês (leitor e leitora), a embrenharem nos mistérios desta obra literária de valor inestimável quão grandiosa se apresenta aos olhos, trazendo-nos um enredo instigante, recheado de encantamento, fruto de um exímio conhecedor da cultura cigana, escritor de primeira grandeza, com várias obras publicadas, muitas referentes ao povo cigano.

O autor traz de longe, lá da infância, o interesse por esses nômades de sabedoria milenar e natureza paranormal, “filhos do vento”, excluídos pela sociedade classista, opressora que nos cerca, perseguidos e, muitas vezes, injuriados. Gente sofrida que, segundo ele, ao longo do tempo precisou criar artimanhas, mecanismos de defesa para se garantirem nas andanças pelo mundo. Ainda pequeno, o autor, nascido no distrito de Rosário, no interior das Minas Gerais, com curiosidade aguçada e sede do saber, teve a grata felicidade de ouvir histórias sobre os nômades, conforme relata:

... Ouvi extraordinária história sobre os nômades por intermédio de minha mãe e, mais tarde, li detalhes complementares à luz da leitura do Livro de Tombo, numa velha escrivaninha, no quarto de meu avô.

A fazenda Grã-Mogol, do vovô Chichico, faz parte da sua memória afetiva e, hoje, se faz presente na vida desse octogenário menino, revestido de pureza angelical para viajar em pensamento lá pras bandas das Gerais e encontrar inspiração para reinventar-se, constantemente, poetizando a vida. Subdelegado do arraial, vovô Chichico, registrava no Livro de Tombo, a história do “Cigano Ramiro Petulengro e seu grupo”, a qual tocou fundo o coração do neto, Asséde, semeando na sua alma o carinho por ciganos.

Embrenhando-se na leitura de Alma Cigana, você vai viver as emoções da história ocorrida no clã de Ramiro e conhecer costumes ciganos: festas, danças, negócios, e o respeito pela liderança dos mais velhos; a sensualidade da linda cigana Vardinha, a saga do caçador de ciganos, o acampamento na fazenda Monte Belo e a espiritualidade envolvente e protetora da Alma Cigana.

Para maior emoção à história, o autor dá asas à imaginação e viaja ao além-túmulo, como se presenciasse o reencontro entre Chichico e Antunes, revivendo lembranças perdidas num passado cheio de controvérsias e suspense. No céu dos bons, o bem vence o mal, Miguel e Vardinha vivem o amor dos anjos sendo felizes para sempre, enquanto Antunes recebe o castigo dos maus e, além da tristeza de perder, para sempre, o amor da sua vida, fica em eterno devir, entre as fazendas Grã-Mogol e Monte Belo. Quê castigo! Vale a pena conferir!

Asséde Paiva desafia o tempo, combate os preconceitos e nos leva a acreditar num ser humano bem melhor quando busca o conhecimento da sua gente, respeitando-lhes as tradições, valorizando a cultura própria de cada povo, sempre agregando saberes em vez de fazer divisões. 

Ao mergulhar em Alma Cigana, o autor se expressa com a profundidade do grande escritor, permitindo-nos conhecer a beleza da sua alma, essência e riqueza de expressão e nos ensina: a vida merece ser vivida com intensidade e amor, e independentemente de onde estarmos, do meio em que vivermos, as histórias a passadas pelos ancestrais e as passamos aos descendentes, sem sombra de dúvida, agregam conhecimentos para a vida.

É com muito carinho lhes apresento este livro recheado de emoção. Desejo a vocês boa leitura e cantem com o Autor a melodia do amor a esse povo milenar, gente como a gente, que preserva a tout court costumes, cultura, língua e tradições.

Agradeço ao amigo pela oportunidade de usufruir e apresentar a obra tão rica em conteúdo e significado, tocou profundamente meu coração. Desejo-lhe sucesso na vida pessoal e no mundo dos sonhos é onde os contadores de histórias e amantes da palavra vivem. Sua Alma Cigana há de viajar mundo afora e levar a luz da sabedoria, da reflexão, do amor... 

Luz, muita luz, aos privilegiados de adentrar no universo literário e rico sobre os nômades.

Parabéns, Asséde Paiva!

Fraterno abraço.

                                                    Natália Faria




Alma Cigana

Tu gitana que adevinhas

Me lo digas pues no lo se

Si saldré desta aventura

O si nela moriré


O si nela perco la vida

O si nela triunfare,

Tu gitana que adevinhas

Me lo digas pues no lo se

“Tu Gitana”, J. Afonso


Meu contato mais recente (com os ciganos) se deu quando estendi a mão à cigana, na esquina da rua onde moro, para ela decifrar o destino: presente, passado e futuro. Honestamente, reconheço a leitura perfeita da velha. Contou-me coisas verídicas, tristes, alegres, sérias e românticas. Pedi para ela nada mais falar, quebraria o encanto das “verdades” e outras loas ditadas, além dos conhecidos lugares-comuns: “vai acontecer algo importante”; “fortuna virá para si”; “moça morena está te perseguindo”; “vejo demanda”; “um moço louro tá te traindo”.

Estou certo: esses nômades têm sabedoria milenar, virtude, presciência, esperteza e um olhar perscrutador de nosso interior escondido de todos, até dos familiares. 

Como alcançaram energias extrassensoriais? São paranormais por natureza. Fácil é deduzir: imagine-se sendo torturado, excluído, perseguido; imagine-se vendido na condição de escravo; marcado a ferro e fogo pelos ditadores; defumado em fogo lento; enterrado até o pescoço na praia para se afogar com a subida das marés; agredido e acusado de ladrão de crianças; de ser transmissor de doenças contagiosas; de ser sujo e antropófago. Imagine-se tendo parte do corpo dilacerado e torturado. Ser causador de flagelos e pandemias. Pense no pavor de ser caçado tal besta selvagem (num país, na Europa, havia o dia de caça aos ciganos).

Eis, em sumárias linhas, o estigma desse povo ao longo dos tempos. Eles desenvolveram mecanismos de defesa, sim: resiliência, premonição e desconfiança, para coexistirem com ganjões (os não ciganos).

Ciganos caminham eternamente mundo afora, sobrevivendo às intempéries humanas e da natureza.

Pressa não faz parte da vida do cigano... da noite para o dia eles evaporam-se em neblina ao calor do sol. Ninguém sabe exatamente para onde se foram, ou mesmo se teriam estado ali. Não é à toa, se intitulam filhos do vento e da estrada. Obstáculos e desafios são superados, paranormalidade afinada, e exaltada, percepção de perigos ainda distantes. Contra tudo e contra todos conseguem a “viderimôs” (sobrevivência), na língua deles.

Ouvi extraordinária história sobre os nômades por intermédio de mamãe e, mais tarde, detalhes complementares à luz da leitura do Livro de Tombo, numa velha escrivaninha, no quarto de vovô. Valeu a pena, o livro está no mesmo quarto da fazenda do vô Chichico, Deus o tenha.

Aos domingos, exceto na colheita, se não era dia chuvoso, se ninguém estivesse doente, frequentávamos a Igreja de Nossa Senhora do Rosário, no lugarejo de mesmo nome. 

Certa feita, ao subirmos os degraus de pedra-sabão da Igreja, lapidadas e abauladas pelo sobe-desce de fiéis e pelo tempo, vi a frase: 

Frigida sub lapis iste Deus misertus est mihi.

Perguntei à mãe o real significado da frase, mas ela sabia pouco e explicou-me sucintamente a lenda: 

O registro na campa era em latim e só o padre saberia o sentido correto. Na tradição oral, significava o último desejo de um celerado que, ao tentar entrar montado, no interior do templo sagrado, o potro se assustou, corcoveou e terminou por derrubar o cavaleiro, que, ao cair, batera a cabeça numa pedra. Os ferimentos foram fatais. Antes de morrer, chamou o padre, se confessou e implorou para ser enterrado sob a escada na qual tentara subir a cavalo, afrontando o Senhor. Tendo recebido o viático, fez generosa doação à Igreja, e pediu inscrição no local, em memória do justo castigo. Fora feito em língua morta: o latim. 

Tudo descrito em minudências no vetusto Livro de Tombo da casa-grande do vô. Abanquei-me junto à velhíssima escrivaninha rococó horas a fio, até ser chamado para comer. Absorto estava com a história, posta nos papéis amarelecidos pelo tempo voando nos ponteiros do relógio.

Meu antepassado foi quarenta anos, subdelegado do arraial onde se deram os acontecimentos narrados. Era sua obrigação manter lei e ordem entre os moradores do lugar. Lema: Faça o que mando e não faça o que faço. 

Em sua Fazenda havia destilaria clandestina... 

Denunciado: vexame de autoridade, teve que fechar a destilaria.

O Livro de Tombo, espécie de Boletim de Ocorrências da fazenda, registrava os batizados, colheitas, visitas feitas e recebidas; apadrinhamentos, mortes, bailes, compras e vendas de semoventes. 

Espanada a poeira do vetusto e valioso livro, esfreguei os punhos da camisa na capa de couro e puxei o laço descobrindo o tesouro escondido. Manuscrito caprichoso, letra miúda, cursiva. 

Após o Termo de Abertura, o longo texto intitulado: 


Sobre o cigano RAMIRO Petulengro e seu grupo


Ramiro levantou-se muito cansado, insone, com terrível dor de dente. Algumas vezes, o pó de aspirina no buraco do dente, dava momentâneo alívio, madornou. Após o efeito do sedativo, a dor voltou firme, forte, intolerável. O galo amiudou os cocorocós e o sol espalhou raios entre frestas. Aí Ramiro levantou-se. Contudo, apreciou a beleza, apesar da dor infernal. Ele como “bom” cigano, dava valor às boas coisas da vida; valorizava quanto é gostoso dormir, amar, divertir e sentir a vida bela. Saúde é a lei.


... E meu avô registrou no Livro:

Hoje, acordei mal-humorado, ao me vestir joguei o colarinho mal engomado no chão e xinguei a empregada, a velha e meiga Bastiana. Falei grosso com a mulher; ela, sempre humilde, sem me contestar, virou as costas para mim. Nhanhá, minha esposa, é muito dócil e sempre me desarma pelo silêncio, Às vezes, sinto pena dela. Isso logo passa. Minha família: esposa, filho e irmão solteiro, me evitam, por que! Sou durão com eles, talvez. Saí, precisava visitar compadre Antunes, o inefável irmão. Na condição de autoridade local, é dever inalienável atender aos reclamos dos moradores, especialmente em se tratando do mano. Ele, além de fazendeiro próspero, é preguiçoso, velhaco e valentão. Peguei o relho e fui ao alpendre dar as últimas ordens aos retireiros e roceiros. O dente doendo mal me deixava falar. Trouxeram-me o alazão, pisei no estribo, montei e chicoteei violentamente o cavalo, talvez ele fosse culpado. Ele partiu num pulo, ao toque das esporas na virilha. Na viagem, passei por roças, onde milharais farfalhavam e se dobravam ao vento. Ouvi o ruído suave dum regato entre pedras; os mandiocais perdiam-se de vista. Pasto verde em ondulações morro acima; e, em cada grota, um bananal. Minha fazenda é Grã-Mogol; a de Antunes, o mano, é Monte Belo. Há duas léguas de distância entre elas. Toquei em trote cadenciado. Costeei o “Córgo Seco”, passei pela cachoeira da morte, porque ali caíram um pica-fumo e cavaleiro. Atravessei um bambuzal em forma de túnel; lembrei-me da reiuna e lamentei esquecê-la. O motivo da viagem: a expulsão dos ciganos acampados nos terrenos de Antunes há meses, e sem mostrar vontade de partir. Ano passado, eles, os ciganos apareceram, aliás, sempre aparecem, de onde, por onde, como? E, sem cerimônias, instalam-se em tendas no local. Ficam dias, semanas, meses; depois, repentinamente, anoitecem e desaparecem. Gente estranha! Arredios, vivendo em tendas, martelando peças de ferro e cobre. São ferreiros, armeiros, latoeiros, cesteiros e seleiros. Às vezes, eles vão ao povoado comprar mantimentos, vender tachos e trocar animais. Sempre, tremendamente ativos dão “mantas”, nas baldrocas, na gente do lugar. Fazem festas ao redor de fogueiras, entoam canções dolentes, em estranha algaravia, e diversas moças, muito belas, dançam. Leem a sorte, desmancham malefícios. Na verdade, os ciganos nunca são problemáticos, afora reclamações de pequenos prejuízos causados aos ingênuos aldeões. O mano acha ser hora de eles partirem e, naturalmente, requer apoio da autoridade, ou seja, a minha presença. 

Ninguém fica mau de repente, a maldade de Antunes é fruto de longo aprendizado; dentre as péssimas qualidades do irmão: libidinagem, a maior delas; outras... ele, vidrado num rabo de saia, pega negrinha, branquela, magrela, gordinha ou baixinha. Às vezes, muitas vezes, fui chamado a arranjar um marido às pressas para empregadinha engravidada por ele, o descarado. 

Sabe como é, né! A gente procura um rapaz solteiro, pobre e agregado na fazenda, arranja o namoro pra ele, noivado, um dote: vaca ou porco, e faz o casamento.

“Continua abusando da mulher do outro. Sem-vergonha!”

Matutando sobre essas coisas e outras, cheguei a sua casa e fui festivamente recebido; jantei só, era tarde, quase quatro horas. Fui posto a par da situação dos ciganos abarracados na curva do rio Lambari. Antunes se dizia incomodado pela demora deles em levantar suas tendas.

Habilmente, se esqueceu de dizer ter cobrado pedágio elevado. Os ciganos estavam roubando? Apenas usavam o pasto para animais e aduar. 

Antunes os culpava pela doença dos porcos: peste suína. Ele apurava um bom dinheiro vendendo os suínos para os ciganos. Ah, nem se importavam em comprar animais doentes. Finalmente, o mano exigia todos pra fora.

“Nas minhas pastagens só minha vacas”, dizia ele.

Ouvi a lengalenga, me sensibilizei nadinha, as palavras entravam e saíam estranhamente da minha cuca, o problema era o meu dente latejante dia e noite. 

Depois de forrarmos o estômago, Antunes intimou-me: “Barriga cheia, pé na areia”, vamos expulsar os ciganos. Era perto. Nossos cavalos já arreados, montamos. Na volta do rio, em local remansoso, num areal, avistei os primeiros bivaques e pontos de fogueira. 

“Ah, dor.”

Aí surgiu o velho. Aparição? Donde? Quem? 

Compadre Antunes empunhou a trochada, esporeamos os animais para chegar mais perto do estranho. Observamos o homem de idade indefinível. Parecia mais ou menos idoso, dependendo da sombra dos últimos raios de sol projetados.

Paramos... ficamos pasmos, sem palavras, e ação.

Ele nos cumprimentou: 

— Sar’shan! — Vão Bem? 

Vimos ser estrangeiro, pelo linguajar estranho. 

Respondemos, com pergunta:

— Quem é você?

— Sou cigano, acompanho meus irmãos naquele grupo acampado na sua fazenda. 

Sofremos intenso exame. Desviamos os olhos inquisidores. Meu companheiro quis avançar com o amame, o homem estranho pôs suavemente a mão no bridão, e o animal paralisou, estacou, pregado no chão. 

O velho olhou para mim e disse:

— Você está com muita dor, se quiser, posso dar um jeito, acabar com ela definitivo.

Inclinei a cabeça, em assentimento.

Ele recitou um ensalmo da cultura cigana, primeiro na língua deles depois, na nossa:

— Oh, dor no meu dente! / não me castigue tanto! / não venha a mim, / minha boca não é sua casa, / não te amo, / fique longe de mim//.

Tirou o punhal da bainha, riscou um círculo no chão e determinou: 

— Quando fincar o punhal no círculo e perguntar se está doendo, você deve responder: sim ou não.

Concordei. 

Ele atirou o punhal no interior do círculo, quase sobre a linha, e perguntou: 

— Dói? — Sim. 

Ele afirmou: — Dói não!

Riscou outra linha traçando uma corda no círculo e voltou a perguntar:

— Dói?  — Sim. 

E ele: — Dói não! E riscou outra linha:

— Dói? –– Sim.

E ele insistiu:  — Não. 

De risco em risco, sins e nãos, a última linha, ele  fechou em signo de Salomão. Atirou a faca no centro dele. Nessa hora, senti terrível tinido no tímpano, e o dente, estilhaçou-se como  vidraça quebrada: tlisss. Nada mais senti. A dor se fora. 

Estávamos perto de um canavial, o benzedor pulou a cerca, cortou cana e me deu um gomo. Recusei, pois, fazia pouco estava gemendo de dor.

Ele ordenou-me: — Chupa esse pedaço!

Enchi-me de coragem e mordi a cana, o dente estava insensível. Premiei-o permitindo-lhe colher feixe de cana. Ele me agradeceu a dádiva e, antes de se meter no canavial, olhou longamente Antunes e, com tristeza, na voz: 

— Você... tem maldade no coração, vai causar muito padecimento ao meu povo. 

E sumiu repentinamente. Parecia ter-se evaporado.

Continuamos em direção ao acampamento, a passo e passo, meditativos. Passamos por um arrozal ralamente semeado, as sementes foram arrancadas pelos melros. Subimos um outeiro, vimos os carroções dos ciganos dispostos em semicírculo. Um cigano remexia a fogueira, era noite fechada. As chamas crepitavam, havia muita fumaça pela queima da lenha verde. Claridade fantasmagórica das labaredas na face do homem. Ele jogava achas possibilitando aumento do fogo. Verifiquei, de relance, um tripé suportando panela fumegante, cozinhando algo de cheiro suave. O cigano nos viu, não pareceu surpreso, fora avisado pelo curandeiro meu dente.

O homem jovem, mastigando um cigarro de palha caminhou em nossa direção, tirou o chapéu e educadamente nos cumprimentou: 

— Boa-noite, ganjão! (não cigano).

Apeamos e puxamos os cavalos pelas rédeas, em direção ao cigano. Ele nos olhou de cima a baixo, nos examinando sem qualquer sintoma de susto. Também o estudamos: vestia camisa drapeada, fofa, rota e amarelada; trazia brinco na orelha, calçava bota de cano longo, e nela apontava o cabo de um punhal. Pareceu hostil a nós, estranhos. 

Da tenda saiu velha e feia cigana. Foi a ele, mansamente. Conversaram em melopeia extravagante. Ela, repelida, voltou-se ao interior da tenda. Outra, velha, gorducha, desceu de carroça e veio até nós. Sorria mostrando alvos dentes. Segurou-me a mão, e me pediu para ler a buena-dicha ou sorte. 

— Vamos à minha barraca. 

Nosso anfitrião falou com a velha, em algaravia disgramada: 

Chalate! — Cala-te!

Ela largou minha mão, o sorriso apagou nos lábios, e retornou à tenda sacudindo a saia esvoaçante. 

Em bivaque distante, cachorro ganiu acompanhado por outros, em latomia. 

Nova ordem em língua estranha, se aquietaram. 

O cigano se apresentou: 

— Sou Ramiro Petulengro, o chefe deste clã e também ferreiro, fique sem receio, não lhes faremos mal, somos desconfiados, mas aqui mando, e obedecem. 

Contamos o sucedido no caminho. 

— Ah, o xamã (o feiticeiro, kaku), ele é iluminado, sabe curar. 

Identifiquei-me como autoridade do lugar e perguntei ao homem se pretendia partir logo, havia reclamações, e não queria complicações sob minha jurisdição. Seria bom evitar acontecimento desastroso, algo de mal, para o bem geral deveriam partir. 

— Onde erramos? — perguntou.

Não havia queixa concreta, que abandonassem as terras, simples assim e duro. Fui franco com ele. A verdade em primeiro lugar.

O homem virou-se e olhou fixamente Antunes: 

— Tínhamos um trato! Roubamos? Brigamos? Enfim, somos culpados de quê?

O compadre abriu a boca, ia responder, entretanto, ficou abobalhado, porque acabava de descer a escada da carroça a mais bela criatura, jamais vista na face da terra. Quase menina de quatorze anos, talvez treze. Sem dúvida, uma fada. Conhecendo o caráter de meu irmão, logo vi um imbrólio em andamento, ele é mulherengo. Atrás da mocinha desceu mulher aparentando mais idade, possivelmente avó dela. Logo, a ciganinha pegou um pandeiro e começou voltear, dando belos passos de dança, mexendo quadris. De outro carroção saiu um rapaz com gusla na mão em direção à moça, tocando o instrumento com doces acordes. Ela trazia flor incrustada nos cabelos negros, soltos, esvoaçantes. Vestia saia estampada até aos pés, e os pulsos estavam cheios de argolas douradas. Trazia um brinco na orelha esquerda. O rapaz, sempre acompanhando os trejeitos, também trazia um brinco na orelha esquerda (mais tarde, vim saber que, entre os ciganos, um brinco significava compromisso, e dois brincos significavam ser livre para namorar). O dançarino aparentava vinte anos, vestia calça preta, apertada nos quadris e enfiada em botas de cano longo; camisa vermelha e, sobre ela, um colete verde; na cintura, trazia faixa amarelada, e, na cabeça, bandana rebrilhava com moedas de ouropel. Ficamos extasiados: A dançarina cigana e seu acompanhante rodopiavam em torno do fogo sem se tocarem, e com meneios sensuais. 

Todos formaram um círculo em volta dos dançarinos. Melhor dizendo: dois círculos, um de homens, outro de mulheres. Batiam palmas e pés, riam. Parecia nossa visita lhes ser agradável; fomos gentilmente convidados a nos aproximar. Antunes fixara os olhos na mocinha. Esquecera-se da expulsão e os convidou a permanecer mais dias. 

Ramiro sorriu enigmaticamente, e nos apresentou a menina-moça, sílfide deslizando sobre a gramínea: Varda era a, sua filha. 

A fazenda Grã-Mogol ainda existe, mas destroçada, ao lado de um monte com mesmo nome, entre as serras de Santa Cruz, Ibitipoca e Mantiqueira — a Serra de eterna neblina — e nascentes dos rios três Pês — Peixe, Pinho e Paraibuna. Vô reinava na região, era um homem valente. Ao derredor da fazenda, enormes florestas compunham o ambiente. Era parte da Mata Atlântica, quase intacta. A mão impiedosa do homem estava nos primórdios do desmatamento. Sem serras elétricas, a derrubada era feita a foice e machado e exigia muitos homens. Cortava-se o extremamente necessário. Durante dias ouvia-se “pá, pan, pó, pan, pá, pó, a derribar grandes árvores de madeira de lei.

Em plena liberdade viviam onças, pacas, cachorros-do-mato, cobras, antas e macacos. Os pássaros voavam em bandos ou só, planando no ar, chilreando; gaviões, em mergulho fatal, apanhavam aves menores. Naquele tempo era farta a caça, se podia escolher: capivara, tatu-canastra, preá, jacu, inhambu, pomba-trocal. Cachorros adestrados farejavam veado. Em geral, a caça fugia, porque, em impenetrável mata, havia tocas em cada grota.

Vovô fora nomeado subdelegado, por interveniência do Presidente da Província de Minas Gerais. A nomeação demorara muito chegar, a viagem durava semanas.  O vô quis ser portador do pedido e se garantir no cargo, segundo as próprias palavras. Ele entregou a petição e seguiu adiante. Na verdade, farreou com as mulheres de vida “fácil”, em Diamantina. Ainda se andava bom trecho no Caminho Novo, terrivelmente tortuoso. Ele fora aberto no Brasil-colônia por Garcia Rodrigues Paes, filho de Fernão Dias Paes Leme, o caçador de esmeraldas. 

Na primavera, os ciganos foram ao arraial. Houve princípio de tumulto e pânico; muitas pessoas cerraram as portas: o farmacêutico pegou a espingarda e se pôs de prontidão, atrás da janela, Pinduca fechou o botequim e Aníbal, da venda, pegou o porrete, atrás da porta, e o colocou sob o balcão. As mulheres observavam através das frestas das janelas. Nada a lamentar, os ciganos negociaram e efetuaram barganhas, como faziam sempre, venderam um burro; e, fizeram truques, como tirar moedas de trás das orelhas das crianças. Ciganas prontificaram-se a ler a sorte e vender poções medicamentosas (mezinhas). Compraram massas, vinhos, fumo e se foram após sessões de circo mambembe. 

Moradores admiraram a beleza das jovens cigana de pele acobreada, cabelos de azeviche, com saias multicores, sobrepostas, brincos e moedas presas às tranças. Notaram nas mais jovens as flores presas aos cabelos, sinal de serem disponíveis para casamento.

Foi mês excepcionalmente chuvoso. Estradas enlameadas, pontes arrancadas, queda de barreiras nas trilhas, enchentes nos vários rios e riachos; casebres arrancados. 

Fiz nova visita protocolar aos ciganos, procurando saber quando da partida. O capitão, líder, ponderou ser impossível viajar em tempo de chuva, a carroça estava quebrada. Entendi, realmente, parecia estar com a roda partida. No dia dessa visita, o aduar estava silencioso, nem crianças nem velhos apareceram para me saudar. Conversei amigavelmente com o chefe. Antes de me despedir, convidei-o a comparecer com músicos ao baile, à Fazenda. Ele prontamente aceitou. Avisei para levar dançarinas. Elas requebravam muito bem. Quanto às músicas, desnecessário dizer, eram muito belas, faziam-me sonhar com terras distantes. 

Dessa vez, ao retornar peguei um desvio para evitar Antunes. Afinal, sua ausência é boa companhia.

Espero grande colheita de café: mais de mil arrobas. Vou exportá-las, na cidade precisam do meu café. Pretendo dar um pagode no final da colheita. Quando o carro de bois trouxer o último balaio, virá com guirlanda na esteira, soltarei foguetes, bombinhas e distribuirei cachaça com fartura. Meu alambique produz excelente aguardente para todos.

Hoje, visitei Antunes a fim de chamá-lo para os festejos comemorativos da grande colheita. Ele me pediu notícias dos ciganos. Contei-lhe ter convidado os ciganos para tocarem na comemoração da messe. Os olhos de Antunes brilharam de satisfação. 

Apareceu na sala de visitas Miguel, meu sobrinho, ele é símbolo do menino retraído, contido, ensimesmado, cabeça baixa, geralmente entrava mudo na sala e saía calado. O pai lhe dava mínima atenção e era para ralhar. Miguel tinha olhos verdes, inteligentes, brilhantes. Sem carinho, sem compreensão, alto e magro, na casa dos dezenove anos, seus cabelos compridos iam até aos ombros. Ele tem encanto especial, mas nunca o vi sorrir. Jamais fora visto conversando com qualquer menina do povoado, embora lhe dessem olhares travessos.

Quando Miguel chegava perto das visitas, o pai dizia ríspido: 

— Saia daqui! Lugar de criança é na cozinha!

... Ele era adolescente...

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Bom dia seu Chico! — Trinca-ferro me cumprimentou. Bem te vi! Que te vi! Era outro pássaro me espionando. Livres ou engaiolados, iniciavam sinfonia matinal. Adoro aves e delas cuido, com carinho, todas as manhãs. Quando viajo, deixo um empregado responsável por elas. Ai dele se alguma ave morre durante minha ausência! Tenho vários pássaros: sabiá, bico-de-lacre, canário, pássaro-preto, maritaca, papagaio, canário-do-mato, azulão, pintassilgo, curió, xexéu.

De manhã, as aves acordavam o povo da Fazenda com orquestra maviosa. Ouvíamos no terreiro o estoufraquear das galinhas-d’angola, os quá-quás dos patos, os estridentes au-aus da cachorrada, o bebe dos bodes, bééé, bébé dos bezerros, misturados com môôô, muuu, dos bois e das vacas no curral. Nos pastos, o him, him, das éguas, no cio, procurando garanhões.

Antunes veio à Fazenda com seis cachorros perdigueiros e me convidou a caçar. Aliás, é sua diversão preferencial. Azeitamos armas; ele trouxe a lazarina, levei a Flobert (filobé), e a buzina. Perdemos o dia, a caça sumiu. Um ouriço-cacheiro acuado pelos cães tiveram focinhos cheios de espinhos, tivemos grande trabalho em arrancá-los. Cachorrada estúpida.

Antunes queria apenas um pretexto para aproximar-se dos ciganos. Chegamos ao acampamento deles, sem surpresa, sabiam ou pressentiram nossa visita. O Chefe, Ramiro Petulengro estava de refle na mão. Ao nos aproximarmos, relaxou e encostou a arma no tirante da barraca. Após os cumprimentos de praxe, ofereci-lhe a minha caça de presente, imediatamente aceita. Dei-lhe o “luís-cacheiro”. Os ciganos adoram a carne de porco-espinho. Convidou-nos a sentar, ofereceu-nos fumo. Aproveitei para confirmar a data do festejo. Ele disse-me que, exceto na slava (festa religiosa cigana), qualquer data era boa. Pediu-me para construir arquibancada para os assistentes e rachasse bastante lenha, porque em festividade cigana há fogueira. Pediu-me, também, um local discreto, para ser utilizado na troca de roupas das dançarinas. Sugeri usar um dos paióis, porque o outro estava ocupado por um indivíduo, mordido de cobra, e à beira da morte. Ele ofereceu os serviços do xamã, que, por ser sábio, poderia ajudar. Valia a pena tentar. 

Antunes perguntou quantas dançarinas levaria.

— Muitas e também a phuri daj (matriarca) e dançarinos.

Nesse momento, da porta de pano da tenda, Vardinha, a ciganinha, saiu. A barra da saia agarrou-se em um espeque e ligeiramente levantada, suficiente para mostrar seus tornozelos. Antunes ficou encantado, extasiado, erotizado. Nada escapou ao chefe cigano, transparecendo nas suas faces a irritação, controlada. 

Impressionante! Milagre! Kaku, o xamã, curou nosso serviçal, picado de cobra. Foi assim: 

O benzedor apareceu repentinamente no curral da Fazenda. Trazia bolsa com algo escondido, misterioso. Perguntou pelo doente, e indiquei o paiol. Entramos. O curandeiro deu olhada na ferida e franziu o cenho. Balançou cabeça em sinal de pesar e se abaixou. Viu a perna tumefacta, gangrenada. Apalpou a testa do doente. Febre alta. Levantou-se e talvez fosse tarde demais. “Provavelmente, o homem partiria para as terras férteis do Pai; mas, daria o melhor de si”. 

–– Primeiro vou tirar a dor. Pôs os braços do ferido junto ao corpo, mandando-o respirar profundamente e segurar quanto pudesse. Ele também reteve o fôlego e respiraram em sincronia. O feiticeiro deslizava a mão, de cima a baixo, na perna afetada. Retinha o sopro e movimentava as mãos. Depois, soprava várias vezes na perna inchada... e cuspia ao lado.

Entendi serem passes magnéticos. Em seguida, ele pôs a mão no queixo do doente, puxou-a para o lado e derramou-lhe beberagem boca abaixo. 

— É sifrit, remédio, disse-me ele, respondendo minha indagação insistente. E me avisou para despreocupar, porque era um revigorante secreto, o doente havia de respirar o sol da vida.

— Saiam daqui! –– ordenou. — Deixem-me apenas o menino. Aplicarei poções, sem quebrar o segredo delas. 

Retiramo-nos do paiol, deixando os três. O garoto me contou que após nossa saída o curandeiro tirou do alforje um vidro com substância densa, um macerado de carne curtida de cobra com menta, camomila e tília, adoçada com mel. Levantou a cabeça do doente e lhe deu de beber, dizendo ser bom para baixar a febre. O doente obedeceu, passivamente. 

Minutos depois, o cigano saiu do paiol e perguntou por mim. Apareci, pediu-me para levá-lo ao brejal. Fomos ao açude, ele deu um sorriso de satisfação ao ver terra especial, amarelada, de um desbarrancado. Faria pó daquela argila. 

Quando o “carimbamba” voltou, no alforje impermeável trazia algo remexendo, peixe não, sequer levara anzol. Entrou no paiol, trancou a porta, garantiu-me salvar o homem. 

No interior, o curandeiro retirou pequenos bichos pegos no pântano: sanguessugas, pondo-as em locais diferentes da ferida, e deixou-as fazerem o serviço. Tornou a sair recomendando ao ajudante substituir as sanguessugas saciadas de sangue. 

Saímos e o cigano me pediu panela de barro. Sob um tripé acendeu fogo baixo, pôs água suficiente para fazer um emplastro. Devagar coando argila num abano sobre panela, solicitou sal grosso e colher de pau, remexendo a massa em círculos. Tendo o mingau adquirido consistência pastosa, retirou-a da panela, derramando-a sobre pano alvo, impecavelmente limpo. 

Ele correu ao paiol com o emplastro. Chegando perto do doente, enrolou cataplasma fumegante na perna dele, após retirar os vermes que, a essa altura, estavam cheios de sangue podre. O adoentado deu um urro de dor, pelo queimor. O cigano forçou-o permanecer deitado. Por fim, o doente dormiu. Esse tratamento foi durou o dia inteiro.

À noite, o cigano veio a mim, dizendo: “O homem está bem”. E ensaiou a partida. 

Quis recompensá-lo, recusou, dizendo dar de graça o quê de graça recebera. 

Ele tinha dom de curar.

Passado esse episódio, vovô preparou a festança. Ele pretendia um grande evento: acontecimento do ano. Contava com atuação dos nômades. É bom lembrar: naquela época, nas Minas Gerais, a música era incipiente, maliciosa, seria pré-história do samba. Tínhamos batuque trazido pelos negros, e lundu, em passos chinfrins, com estas cantigas: 

Tatu tá lá no morro, / Tá danado pra cavá! / Outra vez tatu!/Me ensina cavucá! / Outra vez tatu! / Me ensina cavucá!

Aprontei as instalações. Fiz a cobertura, entre os dois paióis, construí boa e ampla arquibancada. Mandei limpar esterco do curral. Roceiros e agregados varreram o chão e foram buscar bastante lenha para a fogueira. Matei dois “capados”, quatro leitoas e duas reses. Mandei preparar quentão, batida de limão e autêntico restilo. Mandei fazer sucos variados: limonada, aluá, laranjada e groselha. Bolos, broas, bolachas, biscoitos de polvilho e pudins à farta. Coloquei, em local disponível, queijos curados, frescos, doces secos e em calda. Preparei quatro arrobas de batatas-doces e mandioca para assar na fogueira. Convidei vizinhos, parentes, mais de duzentas almas.

O dia parecia ser calmo e rotineiro como qualquer outro. No curral e nos terreiros de café os pássaros brincavam e chilreavam. Prestei especial atenção ao pássaro-preto, contrapiando: É do rico ou do pobre? / ranco, pico e jogo fora! 

O canto dos anuns: piora, piora... mau presságio.

E aconteceu o acidente: queimada descontrolada. À tardinha, resolvemos pôr fogo numa área preparada para roça. Havia aragem quente e abafada. O céu azul mostrava os últimos raios do sol. As aves recolhiam-se céleres aos ninhos. Aceso o fogo, nós esperávamos queimada pacífica. Havíamos feito um aceiro para proteger a mata logo acima. Tudo corria nos conformes, quando um vento repentino levou fagulhas além do contrafogo e do aceiro. Rápido demais, imediatamente chamas levantaram em línguas no pé da relva e lamberam o mato ressecado. Nada a fazer, pois, os ramos secos queimavam tal qual pólvora. Onda chamejante envolveu a mata, cipós, bambus e taquaruçus. Chamei os homens válidos ao combate. Preparamos abafadores de vassouras, apanhamos água no córrego. Pássaros, cobras, veados, preás, pacas, tontos, atarantados, se queimavam com a mata. Gritos, chiados, estertores de aflição, cinzas, brasas. Um estúpido assobiou (não se pode assobiar em queimadas) e fogaréu recrudesceu. Salvamos a floresta, porém a mata, ao lado da casa, havia acabado.


Todos cansados pelo combate ao incêndio, todavia, era hora da comemoração, providências haviam sido tomadas: a comida pronta, as bebidas à disposição e os convidados chegavam. A canseira da queimada acabou. Criados atendiam os convivas. 

Antes de os ciganos iniciarem a função, tivemos rodada de batuque. Um negro sentado em forquilha de umburana repenicou a viola, experimentando as cordas e apertando as cravelhas, afinando-a. Outro caseiro, apelidado Chico Preto, sentado sobre as pernas de um tamborete de couro cru, batia no assento com as mãos espalmadas, ensaiando um caxambu. Zé Lourenço sacudia a sanfona de oito baixos; ela gemia de dor nas mãos tão rudes, dando em troca sons agudos, desafinados: 

Cai fora que’u te mando a foice... 

Iniciaram a dança. Formou-se roda: homens de um lado, mulheres do outro. Dentro da roda a bela cigana saracoteava, fazendo trejeitos acrobáticos, com o rapaz indicado a dançar. Os convidados, com atrito dos dedos polegar e médio, faziam “plic, plic, plic”, imitando castanholas. No interior do círculo, um dançarino, depois de ter rodopiado, vinha à roda agitando os dedos, expressivamente, ou encostando barriga em assistente: O povo cantava, em uníssono: Ou amarra esse bode / Que esse bode morde.

E, varando noite, a ciganada continuava a bailar. Os homens, vermelhos do pó tresandavam suor, e as damas, amolentadas, bambeavam corpo com meiguice e sensualidade.

Pararam e descansaram e se enxugaram. Os homens tomaram café ou cachaça, ou os dois, e as mulheres corriam aos cálices de aluá ou retiravam das terrinas de deliciosos doces em calda. De um porrão, derramavam espécie de leite de onça. 

Ramiro, o cigano-chefe trajando vestes de gala, adentrou no círculo, sendo iluminado pela fogueira. Belo, arrancava suspiros dissimulados. Usava jaqueta de galões trançados com fios metálicos, dourados; gravata vermelha de laço; camisa fofa, com babados no peito; colete de veludo verde e belíssimo, chapéu de palha, calça amarela, e sapatos de verniz, com fivelas de ouro. Cordões de ouro apontavam num bolso e afundavam noutro. Estava soberbo. Levantou braço na horizontal, apontou em determinada direção, determinando abre-alas. Violinos e guslas afinados, dançarinas ensaiaram cantos e contorciam em coreografias eróticas. Agitaram os pandeiros enfitados; e outras bateram as castanholas. Convivas acompanharam com “batecum” das palmas e sapateados. Os homens cobiçavam as mulheres lindas, com saias exuberantes, estampadas e blusas decotadas; com negros cabelos, moedas de ouro encravadas e tiaras de prata. Nos braços, argolas, também douradas, e grandes brincos. E chutavam as saias. Nada demais, têm outras sete saias. A mãe da tribo, a daj, distribuía guloseimas. 

Antunes, “alto” pela excessiva ingestão de álcool, se aproximou de um dos ciganos e provocou: 

— Olha aqui, como vocês se arranjam, vivem do ar?

— Somos ferreiros, artistas, negociantes e viajantes –– e tentou se afastar.

— Vão embora! — insistiu Antunes.

Arrastei Antunes para longe. Um cigano pegou a gusla enlaçada, dedilhou algumas notas à guisa de afinação e cantou com voz modulada, aveludada, trova do seu povo: 

Sobre mim raio despeje / O céu que nos ouve agora,

Se sobre minha vontade / Não tens mando a toda hora.

As castanholas estalam, repicam, com beijos no ar. Os homens buscam, nas mulheres, formação do par, volteiam e sorriem e trocam gentilezas e afagos. Afoitos tentam beijá-las, levam tapas. Sorrisos, gritos. Os mais idosos, acanhados, observam os dançarinos. As luzes resplandecem, aromas inebriam, flores são jogadas ao ar. Um cigano largou o violino, abaixou-se, ergueu-se, sapateando diante de companheira. Rodopiaram e rodopiaram. Pararam ofegantes, afastaram-se, aproximaram-se, recuaram elevando e baixando as mãos, saltando, dançando, cantando, sem se tocarem.

De repente, cessaram os sons, apenas ouviu-se a canção de amor cigano. Um dançarino zíngaro sacou do punhal, colocou-o entre os dentes. A cigana girou em torno, provocando-o com meneios e movendo mãos e braços ondulantes, sincronizados com a cabeça para o lado, para cima, para baixo, sacudindo pulseiras e colares. O par girava em torno das labaredas a lambê-los. Ela, provocante, inclinou-se sobre o parceiro e tirou-lhe o punhal com a boca, o homem, às gargalhadas, roubou-lhe o cravo vermelho entre os seios. A multidão explodiu em alegria, em “uuulalás!” e voltaram a bater, ritmados, os pés ao chão. Violinos gemiam, ouviu-se “chiquetique, xiquexique” excitante dos pandeiros. Frenesi. No auge, Vardinha, a ciganinha, gritou olééé! Sacudiu a cabeça, levantou queixo e sorriu brejeira. O braço direito apontou para o alto, a mão, em concha, captou um raio de luar, enquanto a outra mão enganchada ficou no flanco delgado. Parecia deusa catalisando forças misteriosas, (cósmicas e telúricas). A fogueira crepitava, lançando clarões na face radiosa da dançarina. Ah, ela estava muito bonita! Sua sombra projetada na parede da fazenda era indescritível. Perfeita ligação dos elementos terra-ar-fogo. União cósmica através da cigana. Havia estática no ambiente. Silêncio de chumbo se fez. Faísca e explosão impressionante de palmas, “hurrás”, “ôpas”, “vivas”, “ooollléééés” e “eias”. 

Ela deu um longo suspiro, enlanguesceu, recompôs-se, alisou a saia, resolveu descansar um pouco, se afastou, serpenteando na multidão. 

Foi aí, o “bicho pegou”:

 Alguém vira a cigana esgueirando-se lépida entre povaréu. Ele também largou sua dama e resolveu espionar. Outro observou os dois e, somando um mais um... mais um.

Um grito de pavor congelou o povo. Vinha do vestiário dos ciganos. Antunes apareceu rolando pelo chão, com alguém firme às costas. A luz difusa permitiu vislumbrar Vardinha, trêmula, com a saia rasgada caindo aos pés, Os olhos selvagens, esgazeados, fuzilavam. 

Separaram pai e filho, eram eles, os adversários.

O quê acontecera? 

Antunes quisera violar a moça e fora impedido pelo filho. O rapaz, trêmulo, sopesava a ousadia de enfrentar o pai, dele tinha um temor religioso. 

Antunes saiu bufando, vermelho, e atrás dele Miguel, que, finalmente, fizera algo impensável: enfrentar o pai. 

Os ciganos juntaram tralhas e vestes e partiram mansinhos, silenciosos. Valia a pena evitar retaliação. 

Acabou-se, melancolicamente, a festa tão promissora. 

Eu fiquei meditando: “Por que alguém do meu sangue aprontara tamanho escândalo?” O lúbrico do meu irmão desrespeitara minha casa. Do berro dos cabritos, só entendo disgramado e bebé! Digo o mesmo do mano: bom caráter, ele não tem. Ele é ocioso e mau e farrista. Se mal comparando, sou um santo.

A patacoada me irritara profundamente. Ainda sob o efeito da zoada, saí para vistoriar cercas e divisas. Tenho fixação para o perfeito: esteios padronizados, de jacarandá. Nenhum arame farpado, bambo; mando esticá-lo na hora. Cercas de curral com tábuas aparadas e moirões bem ficados. Era tempo da seara. Quem semeia colhe.

Antunes demorou reaparecer. Viu-me aborrecido e sentiu a barra pesada. Apressou-se em pedir desculpa pelo ocorrido: “Vacilou” num instante de brutal fraqueza, sentiu-se enfeitiçado pela ciganinha. Contou-me ter discutido com o filho e, fora de si, ameaçara expulsá-lo. 

— O filho — disse-me ele — enfrentou-me pela primeira vez, exprobrou-me o comportamento indigno e desagravou os ciganos. 

Antunes retomou o tema sobre a expulsão dos nômades da propriedade. O tempo estava firme, as vias estavam secas e eles teriam consertado o carroção. Concordei. Ele nem era obrigado deixar estranhos morar em seu terreno. Falei em resolver no diálogo. Pedi apenas poucos dias para ajuntar ou convocar ajudantes. Ele disse-me: se eu não agisse, seria responsável pelo evento.

Na véspera, o dia amanheceu com um calor infernal, estávamos passando por um veranico, a chuva tardara a vir. Havia modorra pungente. Ar parado fazia-nos ansiar por brisa mínima. Iniciamos novena pedindo chuva. Carregamos pedras na cabeça, subimos ao morro do cruzeiro, e depositamos as pedras na cruz pela chuva. As plantações estavam secas, esturricadas. O Sol parecia querer acabar conosco, os mamoeiros explodiam os frutos; os pássaros, de natureza alegres, estavam silenciosos. Mau presságio... os anuns vieram chorar na cerca do curral. Sob as nuvens, um grupo de maritacas passou gritando e sumiu no ocidente. Depois, silêncio. O gado sedento ruminava pacificamente. Cachorros escarrapachavam na sombra do telhado, até as pulgas estavam quietas nos pelos dos animais. 

Ao anoitecer, o tempo repentinamente mudou. Um vento sufocante, forte soprava na direção norte-sul, as árvores dobravam à fúria da natureza, palmeiras estalaram e caíram fragorosamente. Depois: cabrum... bum, bum, bum. Trovões pareciam sacudir os alicerces, as janelas batiam violentamente nos batentes, as portas oscilavam, ameaçando arrancar as tramelas. E nós dentro de casa, quietos, quietinhos. Relâmpagos cortavam o firmamento em todas as direções, dividindo-se, subdividindo-se, clareando, por milésimos de segundo, nuvens negras, partindo-se em porções variadas. Os raios davam estalidos próximos, fortes, parecendo cair na porta da sala. Era apenas revérbero dos sons. Na verdade caíam longe. Só no dia seguinte, após a tormenta, poderiam realmente encontrar e avaliar os estragos. A chuva: violenta, aterrorizante, copiosa e contínua noite inteira. Chuá das águas até o adormecer. De manhã caía muita água, depois afinou, ficou enjoada, irritante e continuou por semanas. A enxurrada, vindo de todos os recantos juntava-se e formava riachos, rios e mar. A tromba d’água parecia trazer o juízo final e fez estragos incontáveis. Coqueiros centenários estavam no chão. Atoleiros aqui e ali. Mar de água e lama cobria vargens, rios se ligavam a córregos, transbordavam: dilúvio. 

Eu tinha missão a cumprir. Chamei dois empregados, dei-lhes munição, filobé, e facões, selamos três bestas, pusemos as capas e partimos à procura dos nômades. Depois de muitas voltas, nos afastamos da enchente e das traiçoeiras águas. Morros e planícies transpostos por fim, chegamos ao acampamento... Tudo estava coberto por um lençol de água. Aonde foram os errantes? O local onde pousaram era um mar de lama. Pensei, meditei, um desastre acontecera caso tivessem abancados na planície. Semanas se passariam até o escoamento total das águas. Desastre horrível, Deus! Só encontramos carroça virada de rodas para cima, meia légua além do local original. Roupas, ou melhor, pedaços de tapetes e lonas, foram encontrados nos galhos aqui e ali. A tragédia temida se consumara, e os ciganos possivelmente foram mortos na enchente.

Quando cheguei à Fazenda encontrei Antunes possesso, louco. O filho havia desaparecido na noite torrencial. 

Ele acusava os ciganos: 

— Aquela gente é culpada, discutimos pela cigana, ele jamais sairia de casa. 

— Calma, compadre, o menino está no arraial, com algum parente!

— Não, não! Procurei onde estaria, ninguém o viu, está morto na enchente ou fugiu com os ciganos. 

Resolvi voltar a investigar mais profundamente. Antunes propôs-se a ir comigo, era tarde da noite escura, de lua nova, resolvemos dormir. No dia seguinte recomeçaríamos o exame do local. Nem amanhecera Antunes me chamou. De fato, nada mais existia do acampamento cigano. Torrente levou e lavou o terreno. Margeamos o córrego e, muito além da carroça invertida, descobrimos um casaco. Antunes deu um grito de dor, reconheceu traje do filho. Tiramos a dúvida, a cabeça-d’água o levara. Com certeza se dirigira ao acantonamento dos nômades, ao tentar atravessar córrego, sem conseguir, fora de roldão.

Ensandecido, Antunes chorava agarrado aos trapos.

— Os vagamundos são inocentes, pereceram também. –– Ponderei:

Antunes deblaterava, os ausentes estão sempre errados.

— Ah, me vingarei! Esbravejava.

Fora de si, via errantes em cada canto. Nenhum grupo jamais pôs os pés na sua fazenda. Ele perseguia e ia atrás de qualquer estranho. Se fosse cigano, vingava nele o filho. Daí em diante, ao ouvir falar ciganos, saía a persegui-los, expulsava-os estivessem ou não nas suas terras. Matava-os também, sem peso na consciência. 

Antunes recebeu a alcunha de caçador de ciganos.

................................................

O que se passara com Miguel?

Miguel, absorto, tristonho, apertava talo de capim-gordura entre os dentes, com ligeiro sabor adocicado na língua. Quando terminava aquele maquinal exercício, jogava fora o talo e abaixava a mão aleatoriamente, e pegava outro raminho. Parecia observar atentamente um pássaro. Não! Apenas olhava, sem ver, o pensamento estava muito longe, no infinito. As faces estavam abatidas por perda de sono ou por drama maior. Pensamentos, em turbilhão, choques de energia e se dissolviam em si mesmas sem se ordenar em nada lógico. Sofrera muito, terrivelmente, com os acontecimentos. Deus! Teria matado o homem, caso fosse outro, mas o pai... O jovem estava num dilema atroz: machucaria o pai?  Enfrentaria a situação?  Fugiria?

Entardecera, e nuvem negra se firmou no horizonte. Ele se deu por ela e por um milionésimo de segundo se distraiu e pensou na chuva. Era tempo e, às vezes, vinha forte e violenta. Calor insuportável fazia brotarem gotas de suor na testa e no peito. O pensamento dele agora se voltara para os ciganos. “O quê a cigana, linda estaria fazendo? Por que os ciganos teriam acampado na beira do rio? De onde vinham os ciganos? Para aonde iriam? E se chovesse dias e dias”?  

Ele ousava encarar o próprio coração, tunc, tunc, tunc. O quê se passava com ele? Estranho calor sentia quando se lembrava da ciganinha. Ele sabia da qualidade de seus anseios e angústias: estava irremediavelmente fisgado por Eros, e fingia ignorar. Nunca se apaixonara, nem tinha noção segura sobre amor. 

É, todavia, algo estava para acontecer vindo do horizonte quase negro: cirros e cúmulos se enrolando.

Num esteio da cerca, um pássaro batia asas e cantava: tiziu! tiziu, tiziu! e depois fugiu em voo rasante pelo matagal. 

Miguel ficou tempo suficiente para elucubrar boa resolução, a face, sombria, distendera e relaxara um pouco, alegria fugaz transparecia nela. Decidiu e partiu em direção ao lar. Logo chegou, e se trancou, como sempre fazia ultimamente. O trovão ribombava preludiando grande temporal, enquanto os sapos, na lagoa, dialogavam:

“Meu pai foi rei? Foi, não foi!”

Ele só demorou a pegar trastes e saltou pela janela, sendo engolido pela escuridão, riscada, vez por outra, por relâmpagos.

....................................................

No diário:

Aborrecido acompanhei uma “caçada” aos ciganos. Fui para evitar carnificina. Cercamos os vagabundos quase no cume da serra da Mantiqueira. Infelizmente, houve confronto temido por mim. Acuamos os ciganos, houve tiroteio. Entre os mortos: a bela Vardinha. Prendemos os sobreviventes e começamos longa viagem ao xadrez. Seguimos o roteiro, tendo os “bandidos” amarrados. Longa e perigosa descida; tropeções, escorregões, quedas: Você pode caminhar reto quando a estrada é reta e torto se é sinuosa. Assim é a vida: A montanha é perigosa...

Tendo os ciganos atrelados, ao passarmos por garganta íngreme, avisei:

— Dedo no gatilho! Firmes nas rédeas! Aqui é lugar de tocaias, assassinatos e roubos. 

No local denominado passa dez, (Em estrada torta passa-se dez vezes), longe tremeluzia um ponto de luz, por precaução nos afastamos e nos escondemos atrás de arbustos. Luz veio se aproximando, tremeluzindo, coleante. O portador era rondante, acompanhado de patrulheiros armados com espingardas, facões e garruchas. Eles se identificaram. Conversa vai, conversa vem, soube que ronda era feita há anos, desde quando desbarataram famosa quadrilha de salteadores na região. O coronel José Ayres Gomes, dono da montanha, prendera súcia chefiada por padre Arruda. Logo um padre... Perguntamos se temiam cilada, afirmaram serem bravos e trocavam senha com colegas vindos serra abaixo; em caso de silêncio das partes interessadas, em poucas horas um batalhão da polícia, no topo ou no pé da Serra, sairia à procura. 

Continuamos descida. Nós mantínhamos os ciganos presos, jungidos ao cabeçalho do arreio. Não fugiriam facilmente. 

Traçávamos planos para julgá-los, condená-los e enforcá-los no arraial “Corgo” do Ouro, no pé da Serra.

Miguel, prisioneiro, vira Ramiro e Vardinha caídos na luta. Eles foram para  o céu dos ciganos. 

Relembrou as últimas palavras de Varda em noite estrelada: 

Me voliule  samurri  djibe  movoin.  (Na vida só se tem um grande amor).

Morte de uns, tristeza infinda. Ele, abúlico, quedou-se em lágrimas, rolando pela barba híspida.

.............................................

Miguel entrara no acampamento cigano apavorado. Era noite feia, sombria, sem estrelas brilhando. Acordou os dorminhocos e os orientou na noite escura, a tempo de escaparem do dilúvio. Subiram ao planalto e viram as tendas, carroças e utensílios domésticos serem levadas de roldão pela enxurrada. 

Os ciganos ficaram encantados com seu salvador de morte horrível. Aceitaram o moço romani rye (não cigano, amigo). 

Em viagem, pelo mundo afora, Miguel adotou o modo de viver dos nômades: usava os mesmos trajes, aprendeu a língua deles, conhecia bem suas forças e fraquezas. Mudou o jeito de ser, tornou-se mais comunicativo, sorridente, alegre, modificou-se para melhor; sem dúvida, “feliz cigano”. Renasceu.

Enamorou-se perdidamente: um dia aproximou-se dele a ciganinha Varda pedindo-lhe para ler as linhas da mão. Ele estendeu-a, enquanto era transfixado por olhos luminescentes. Varda segurou-lhe docemente a mão, trazendo-lhe a palma próxima ao seio e, nos lábios um sorriso matreiro. Então, lhe garantiu muita felicidade, no presente; e, tristeza no futuro.

“Nossa! Você é romântico”, disse-lhe.

Os olhos resplandecentes de Vardinha perfuraram o coração de Miguel e nele e aninharam. As almas se fundiram.

Segundo a cultura do povo cigano, só podiam se casar se fossem da mesma etnia; além disso, ela estava prometida ao primo. Miguel disputou-a em duelo de punhal. Foram separados, antes de se ferirem perigosamente. O tribunal cigano: Kris, após debate longo e fastidioso, deliberou contra os amantes. Se teimassem, seriam expulsos do grupo. Havia problemas com os brancos e precisavam de solidariedade e apoio mútuo. Sabiam por longa experiência que a corrente arrebenta no elo mais fraco. O moço pareceu se conformar. Não há jovem resistente ao olhar enviesado de ciganinha em flor. Foram vistos saindo da tenda com pulsos enfaixados. Uniram-se pelo sangue.

Os membros do clã cigano “fecharam os olhos”, aceitaram o fato consumado. Era o destino: Bar si bar (sorte é sorte) ...

Miguel assumiu o papel cigano de corpo e alma, falava calão, sem sotaque, deixou barba e cabelos crescerem, escureceu a pele expondo-se ao sol e, nas partes claras, passava cinza ou carvão. Não era reconhecido nas correrias, em fuga às perseguições. 

...........................................

Os ciganos foram tocaiados num bosque, os perseguidores incendiaram a matinha e ficaram à espreita nos pontos de fuga. Ramiro Petulengro não dava ponto sem nó, ele conhecia uma caverna secreta e os tirou da armadilha. Fugiram antes de serem presos num círculo de fogo.

Há sempre um traidor facinoroso. Um estalajadeiro os atendeu melífluo, se dispôs a assar um frango; para tanto, precisava buscá-lo no poleiro. Ao sair, correu pela vereda, para denunciá-los à polícia.

Houve confronto, bateram as cristas terçaram armas. Os sobreviventes do encarniçado embate foram presos e conduzidos, por meganhas, à prisão no povoado de João Gomes. 

O demo soprou no ouvido de Antunes: “Havia cigano na região” e Antunes estava à disposição para aplicar qualquer castigo aos nômades. 

Miguel, com cara inchada pelos sopapos, tombos; riscado, lanhado por espinheiros, estava irreconhecível.

Antunes aproxima-se, lentamente dos presos e levanta o queixo de um, puxa a barba de outro, soca o próximo...

Miguel teve medo. 

Não tá morto quem peleja, ele em hercúleo esforço, livrou-se do laço, correu em direção ao Templo Sagrado, de braços abertos. Seria salvação. Chegou ao átrio. Só mais um pulo e estaria livre. Arrancou bandana, jogou-a ao chão e pôs mão no portal da entrada. Sentiu-se salvo na casa de Deus.

Antunes não iria perder o prisioneiro; em decisão extrema sacou da garrucha .380 e atirou duas vezes no fugitivo. 

Com o estampido da pistola, o cavalo upou, corcoveou e derrubou o cavaleiro. Na queda, bateu com a cabeça num frade de pedra. Antes de mergulhar na inconsciência, viu e ouviu o ferido se arrastando para ele tartamudeando:

— Pai, você me matou!

...................................................

Pedi licença do cargo de subdelegado, o fardo da vida pesou. O terrível acontecimento, na Igreja era insuportável para mim, e me abalou os nervos. 

Antunes, levado à casa paroquial, na colina, ao lado do templo, e jamais se levantou. Agonizante, extrema-unção e pediu para ser enterrado sob os degraus da Igreja. 

O coveiro, um ex-padre, cinzelou esta frase: 

Frigida svb lapis iste Devs misertus est mihi.

                   [Debaixo desta pedra fria, Deus teve de mim compaixão.]


Comentários

  1. O parecer de Flávio Musa de Freitas Guimarães sobre Alma cigana:
    “Que coisa mais linda! Abri e não parei até o final: delicado, doído, emocionante, riqueza de detalhes, tudo em prosa poética e perfeita.
    Obrigado e abraço, ainda encantado com seu poema em prosa.
    É coisa de mestre escritor. Parabéns”.

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