Pular para o conteúdo principal

Destaques

CONFITEOR [Eu confesso]

CONFITEOR  [Eu confesso] Asséde Paiva                 Nesta casinha pequenina, em Valadares, eu nasci em 1934 Cada qual no seu canto sofre seu tanto O segredo para lutar e vencer na vida ou na guerra ou na tristeza está no começo de toda a vida, de todo ser. Lutar, lutar, sangrar, mas vencer, vencer e vencer. Às vezes perder, mas viver e viver lutando sempre, sobrevivendo. Desistir nunca! O futuro será sempre um novo recomeço. As adversidades da vida nos ensinarão que a cada luta virá o aperfeiçoamento para uma grande vitória. (Jorge de Lima). “ E disse Deus a Moisés: Eu sou o que sou. ”  (Êxodo 3,14) Se alguém me perguntar: Que és? Direi: não sei! Eu queria pão e não podia comprar, hoje, posso comprar e não posso comer. Algo que escrevi há tempos: um conto? Não. Romance? Nem pensar! São reminiscências e fragmentos da minha vida. Lembranças que trago de minha terra e das gentes que convivi. Nada mirabolante. Na verdade, não tenho muito a...

O MENINO NO PONTILHÃO

 O MENINO NO PONTILHÃO

Pontilhão sobre o Rio Paraibuna


Era uma vez...

Ele tinha nove ou talvez dez anos e ficava horas a fio olhando aquele pontilhão sobre águas turbulentas, pensando que o trem, que por ele passava, um dia cairia nas águas espumantes. Seria um grande desastre, porque aos seus olhos de criança, o rio e a ponte eram enormes. Imensas também eram as composições ferroviárias que passavam, principalmente as carregadas de minério de ferro.

 “De onde vêm? para aonde vão?” Meditava o menino. 

A “grande” ponte às margens do rio AnubiaraP (1), profundo, de águas rabugentas que passavam turbilhonando entre pedras. O embate águas e pedras, produzia ruídos tenebrosos, e os peixes pulavam, e as pedras resistiam. O menino imaginava o poder das vigas de aço que suportava o trem de ferro; pensava na força do rio sobre as pedras. 

“Sonhas, ó menino?” 

Ele tinha medo, muito medo do pontilhão. 

Aconteceu que no lugar em que moravam só havia as atividades: trabalhar, deitar e rezar. No quesito oração, além da missa havia o costume da “visita da santinha”, isto é, Nossa Senhora ficava durante nove dias numa casa e, depois da novena todos se reuniam e levavam-na, em procissão, para outra casa. 

Eis que na época desta história, a santinha na casa do menino, pensador. findava a novena. Era hora de trasladar a santa para outra morada. Por destino travesso, a nova visitação da Santa ficava do outro lado do pontilhão, na casa de dona Arzelina ou Orzelina. No dia aprazado, apareceu na casa do menino um mascate, santeiro, carcamano(2), surdo-mudo, ofertando quinquilharias: espelhos vidros de cheiro e santinhos. Isto causou atraso no terço ou na reza, como diziam. Quando saíram, em procissão, já entardecia. Seguiam em fila dupla, cada qual com vela acesa na mão. A dona da casa levava a Santa, devidamente protegida no oratório, à frente de todos. Cantavam desafinados: Avê! avê! avê Maria! Avê! avê! avê! Avê Maria! / A treze de maio na cova da Iria, / no céu aparece a Virgem Maria...  E também cantavam, piedosamente, o hino Com minha mãe estarei / na santa glória um dia, / junto à Virgem Maria / no céu triunfarei / No céu, no céu... 

O grupo devocional passou por uma tranqueira, feita de sucata de trilhos, inúteis para a estrada de ferro. Concentrados, caminharam ao longo da via férrea, sempre a cantar: avê! avê! avê Maria! Aí, chegaram ao pontilhão. Não foi complicado atravessar, pois o menino teve ajuda do tio... O tempo apagou quem o ajudou. O menino só se recordava da mais horrível experiência da sua vida. O tio lhe dera a mão e, sem problemas, estavam do outro lado. Bem abaixo deles, as águas rugiam. Depois da ponte continuaram a rezar, como de costume, até à nova casa da santinha. 

Enfeitado de rosas, cravos, fitas e estrelinhas, um altar esperava a Santa. Cada residência se esmerava para fazer o mais belo oratório. Os donos da casa esperavam na entrada. Ajoelharam-se, persignaram-se e rezaram as ave-marias, padre-nossos, e glória ao Pai, no terço do Santo Rosário. O puxador do terço resolveu rezar jaculatórias para as almas dos que já se foram, e a noite avançou. Satisfeitas as almas, houve momentos de conversa fiada, e um bolo foi repartido e pedaços servidos com café e leite quentes. Despediram-se, beijaram as fitas da santa e se foram em debandada. O tio do menino, que tinha namorada na fazenda Cachoeira, do seu Nestor, caminhou em direção oposta ao arraial de onde vieram. 

E o menino ficou só. 

Era noite fechada. No retorno estava o pontilhão a ser atravessado. A luz de bruxuleante de um lampião clareava as águas bravias... E agora? O menino que, então puxava fila dos caminhantes, parou à espera de que alguém lhe desse a mão; ninguém o fez, e ele não teve coragem de pedir ajuda, pois era muito tímido. Ficou por último. 

Atravessar era preciso. “Ah, pontilhão dos terrores”.

O menino encheu-se de coragem, deu o primeiro passo, o segundo e outros, sobre estreitíssima tábua, posta entre trilhos para facilitar a travessia dos pedestres. E as águas bramiam nas pedras. Foi bem até à metade da travessia, mas a lua desviou-se de nuvem e clareou demais. Ele tonteou-se, se viu caindo... caindo. Pisou levemente na tábua e achou a altura descomunal. Ouviu o ribombar das águas revoltas e se abaixou, quase deitando na tábua corrugada. Então, se pôs de quatro, e com as pernas bambas, tremendo arrastou-se, lentamente, centímetro a centímetro. Suava e tremia; os olhos enevoavam... A vertigem o paralisava... E lá no fundo, as águas e as espumas o chamavam. Imensa era a sua aflição, pois se lembrou que há dois meses o trem apanhara as irmãs gêmeas.

No peito dolorido, o coração como tambor: tuc, tuc, tuc! 

Ouviu-se na curva do caminho de ferro o apito do trem. Dilema atroz: cairia nas águas ou se deitava e esperaria a locomotiva ofegante... 

Iara, a deusa das águas, o chamava para um abraço. Ele  lento a se arrastar...

E o trem de ferro, resfolgante, apitou: sai daííííí!!!

Ninguém se mexeu para evitar o que se deu... 

Nos momentos mais difíceis, sempre se estará só.

Tudo é só, a montanha é só, o mar é só. A lua ainda é mais só. Se encontrares alguém, ele está só também.


Notas

1) Paraibuna, ao contrário.

2) Estrangeiro, esp. Italiano.

Comentários

Mais lidas