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ALMA CIGANA (Parte II): Fantasmas
ALMA CIGANA: Parte II
... E a lenda continua além-túmulo:
FANTASMAS
─ Boa-tarde, Chichico!... “Entra Antunes!... Entra logo, homem!”
Eis meu irmão, sempre um seco: “b’tarde, b’noite, b’dia, té logo”. Não que fosse grosseiro. Nos últimos tempos trazia, no íntimo, certa irritação comigo. Nossos encontros eram estéreis, lacônicos, ásperos, frios... Eu acabava de chegar à fazenda Grão Mogol, ainda estava montado no meu “bebe em branco” muito arisco, fogoso, sim. Apeei, lacei fortemente o cabresto na argola do pelourinho e ouvi distintamente: “Chega, toma um café!” Ao pé do primeiro degrau, tirei o chapéu, segurei-o pelas abas com timidez, subi os degraus parando no último, esperando ordem para subir. O convite final veio: “Entra e senta!” Arriei-me na tábua de madeira, o banco Chichico era de ripas. Perguntei: “Tudo bem!? a família ‘tá boa? E a Nhanhá e as crianças...? ‘Tão bem.” O silêncio preencheu nosso vazio de palavras. “Como estão as coisas por aqui?” Olhei em torno, ruminava a pergunta. Meu irmão cofiou a barba. “Ah, vivo como Deus é servido, você sabe que quando temos chuva, vem demais e leva nossos arrozais; quando está seco, o sol torra o milharal, antes de as espigas se embonecarem. Eu esperava colher quatrocentos alqueires de milho, talvez não dê trinta. Tem também a praga de formigas; o gado, vez por outra, pega febre aftosa, os porcos também adoecem de peste suína e nossas galinhas todos os anos, têm gogo ou caroço. É muita luta na roça, a gente não ‘veve’, vegeta, você sabe! O pessoal da cidade nem pensa quanto trabalho dá para colher alguma coisa que depois eles compram tão barato e reclamam, porque acham caro.”
Chichico parou porque falara demais e sentia falta de ar. Arfando, pediu a alguém, que fizesse o café. — É angina, é o cigano, justificou...
Longa pausa entre nós, na varanda fria, esquisita, tristonha. Abaixei a cabeça, evitei os bambuzinhos que desciam em ramagens, dos frechais, tirantes e vigas do telhado, afaguei alguns ramos com a mão. Olhei em direção à lagoa, divisei a lâmina d’água do açude; estava tranquila, sem receber o bafo de uma brisa leve, que fosse. “O espelho d’água está muito baixo, deve ser a seca que assola a região”. Comentei e assim e reiniciei o diálogo porque o som das palavras estava extinto há muito tempo. Há minutos só ouvíamos o ‘cricri’ dos grilos.
É ─ concordou Chichico –– paciente e conformado. Um pouco de saliva escorria no canto da sua boca. ─ Você viu por aí, é uma “poseira” só: o capim-gordura secou, perdi alguns animais, o fogo gera sozinho, tudo tem a cor vermelha da terra sedenta, não sei quando esta seca vai acabar.
No açude, gansos deram o tom, com intensos grasnados e assobios, espantando saracuras e marrecos. Caímos no mutismo olhando-nos sem nos ver. Chichico começou a enrolar um cigarro de palha, parecia alheio a mim. Nem sei porque o visito todos os dias. Certo que sempre monto e parto de minha fazenda para visitá-lo. E o maldito pensamento: “Por que não fico em minha casa? Não sei!. Também não entendo porque vou sempre à escadaria da igreja, todos os dias lá estou não rezo, mas estou sempre lá. Eu não me lembro bem, há uma sombra na minha memória, só uma mancha de sangue, um homem caindo, o corcel assustado e... eu, montado, indo a Grão Mogol. O animal me leva, não preciso guiá-lo. As porteiras choram ao rodar no cochinho ‘nhé-é-é-é’ e emitem, ao fechar, um ‘bá! á-á-á...’ Você já viu como é triste o ranger de uma cancela?”
A tarde findou à noite a brasa do cigarro do meu irmão era intensa, ressaltava a nuvem de fumaça que escondia seu rosto e espantava os pernilongos. A lua apareceu pálida; vi são Jorge, seu cavalo e o dragão. Coroando a lua, estavam as estrelas muito longe, muito frias, cintilantes. “O céu hoje tá muito bonito!” Comentei, recomeçando a conversa que era, como se vê, ao acaso e aos arrancos. O silêncio crescia nos envolvia como mortalha se eu não desse andamento no assunto, que, aliás, repetíamos todos os dias, ad eternum.
“E os ciganos... será que eles vêm este ano?” Era o nosso tema recorrente. “Ah, não vêm! Eles partiram, você os perseguiu, lembra-se?” A tranqueira bateu no esteio, três vezes, com aquele som cavo e triste... bá!, bá!, bá!
“É o capitão dos ciganos, ele vem pedir permissão para acampar”, disse Chichico.
Reparei no homem, esperando que ele adentrasse no alpendre. Ele parou e perguntou, sem subir, com voz impessoal: “Delegado, posso acampar com meu povo?” “Sim, pode”. Então perguntei: “Quedê Vardinha?” Relembrei, a cigana que persegui, até que meu filho me roubou. O cigano me olhou, abanou a cabeça como que contrariado, incorporou-se a casa, pela parede sul, sem fazer qualquer ruído. Esquisito ele não precisou de porta... Não me incomodei, nem meu irmão pareceu surpreso.
Era sempre assim: Chichico gostava de encarar de frente o cigano. Sentava-se na cadeira de palha, ‘o assento do rei’, porque era seu privilégio usá-la, mais ninguém. Bateu o pó inexistente nas pernas, ameaçou levantar-se. E estávamos só, nós dois, dolorosamente sós, nenhum barulho vinha de dentro da casa, o café não veio nunca. Ele me perguntou: “Por que você sumiu tanto tempo?” Olhei-o sem entender, pois, parecia se esquecer de minha visita diária. Então falei... falei mentiras, mentiras. Estava viajando, andando por aí, a garimpar, ou visitando parentes. Eu era boiadeiro, comboieiro, tropeiro, plantador de café, fazendeiro, sem direito de parar em casa... “Voltei, vim pegar Vardinha...” Aí, Chichico cortou minha fala, animado por meu desabafo. “Esquece! Ela não é de você! ama Miguel, seu filho... Estão aí, você não os vê, porque estão fora do seu alcance; vou mostrá-los”. Faz um gesto com as mãos, como que descerrando cortina invisível. Além do portal dourado me era vedado ultrapassar as barreiras invisíveis aos imortais. Quanta agonia, que terrível dilema a enfrentar! Que tristeza, toda minha vida de infâmias perpassava por mim, como um pesadelo infinito. Um quadro se entreabria ante meus olhos: odioso para meus desejos impuros. Via um jovem de cabelos, encaracolados, lendo absorto, um livro que parecia muito velho. Em seguida, uma bela mulher entrava no quarto, abraçava carinhosamente, o leitor, pelas costas, repousava o queixo no seu ombro e, sorriam embevecidos e extáticos por segundos.
Então o cicio do vento na palmeira, ou o murmúrio de água, ou o canto de uma ave... Não sei! Os amantes se viram para meu lado. Que espanto! que susto medonho! Eles: meu filho e Varda, a cigana. Antes que eu desse um suspiro, a cortina cerrava.
Eu ameaço partir, atarantado. Chichico diz:
“E você matou seu filho na porta da igreja”. Intima-me: “Fica hoje, é tarde!”
Eu justifico: “Me enganei, pensei que meu filho fosse um cigano fugitivo! Não teria feito o que fiz, ah, se soubesse...”
“Ô Antunes você foi muito mau. Caçador de ciganos você era.”
Sou conduzido por força irresistível ao quarto de visitas, mobiliado com móveis de mogno, espelho de cristal, consolo e cabide. A escarradeira num canto, a bilha noutro, sobre a cantoneira, a canastra está junto à cômoda. A mocha velha arma de fogo, dependurada no teto. O lampião com a luz baça, dança na parede. Antes de deitar ouvi:
“B’noite” e o aviso: “Não se assuste com o moinho, ele mói pedra de madrugada e a risada sarcástica: quá, quá, quá...”
Ouvi o ranger da tramela, por fora, meu irmão me trancava. Aconteceu o pesadelo de sempre: Acordei empapado de suor frio, ao ranger da pedra de mó. O velho relógio raspou a garganta, dando quatro horas. Vejo ciganas volteando ao som de pandeiros, jovens treinando com punhal ou fazendo malabarismos, armando barracas, acendendo fogueira, trabalhando no ferro e cobre. Uma cigana pegou minha mão, sorrindo irônica e falou para outra:
“É ele Zoraida! é ele! o condenado a vagar para pagar seus malefícios e perseguições ao nosso povo. Ele nasceu sob o signo do mal. Ah! como tem culpa e como pagará”.
A cigana de olhos ardentes, ria, ria, ria. “Tu estás condenado. há, há, há”. Ainda escuto os risos zombeteiros, cada vez mais longe.
Procuro Varda, com os olhos. Estaria lá? Eu a vira com meu filho, ou seria uma ilusão? Ah, como a queria!
De madrugada levantei-me ainda sem saber se tivera um pesadelo. Atravessei a porta que, estranhamente, não me deteve. Assustei-me com o local deplorável. Havia trastes por todos lados: velhos, podres, carunchados, empoeirados, aos pedaços, teias de aranha...
Ninguém habita aqui? Gritei. Só o eco, dos meus apavorados clamores, retornou. E frio... Que vento gelado! Embora as janelas estivessem fechadas. No alpendre, só um banco quebrado, nenhuma cadeira de palha, nem flores... Nada. Também não havia porteira e, do curral só restavam vestígios. No açude, que açude? Pântano, o vento forte curvava taboões.
Meu cavalo... Meu cavalo? Montei-o. Céus!... Estava no adro, sobre um degrau de pedra, da Igreja. Leio:
Frigida svb lapis iste Devs misertus est mihi. (Sob esta pedra fria, Deus teve de mim compaixão).
O cavalo caiu...
“Como me irrita esse pessoal que, na missa, não me vê. Crianças, sensitivas, parecem ter medo de mim!!! Será que as assusto... E os cachorros, com rabos entre as pernas, ganindo, fugindo...”
“Alma condenada, eu sou. Amanhã, recomeçarei. Ah, sofro tanto, meu Deus!”
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Boa-tarde, Chichico! Entra, Antunes! Entra…
Entra, Antunes! ... Entra, Antunes! ... Entra Antunes!... Entra...
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