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Possessão
Possessão
Eis a messe do fazendeiro. Como teria começado aquele drama? Ninguém sabia explicar corretamente. Aqueles que tinham boa memória recordavam que, no mês de maio, costumavam rezar o Santo Rosário, em homenagem a Nossa Senhora. Em cada casa ela ficava nove dias, era a novena. Levada de uma para outra em procissão solene, à noite, quando entoavam hinos religiosos durante o trajeto. Vestiam, neste dia, as crianças, de anjinhos para maior brilho da festa. Chegou a vez do acontecimento se dar na fazenda Jurema. Foi aí que os problemas da menininha se tornaram evidentes.
Nossa Senhora, a virgem santa, vinha de longe, em procissão, com muita gente, pois Chico Nico era importante Todos lhe puxavam o saco. E vinham segurando velas acesas, com as duas mãos à altura do peito, em sinal de contrição e cantavam:
“Avê... Avê... Avê, Maria!... Avê... Avê... Avê Maria!"
As velas tremeluzindo à brisa suave de uma noite estrelada, a imagem balançando levemente, no andor, nos ombros dos irmãos marianos, o serpentear na planície, causavam arrepios de emoção nuns e de medo noutros, dependendo do estado de espírito.
O pessoal aglomerado, no alpendre da fazenda, esperava. Os sons ficavam cada vez mais nítidos:
“A treze de maio na Cova da Iria,
Dos céus aparece a Virgem Maria...”
Ritinha, sexta filha do casal Chico Nico e Almira, então com onze aninhos, franzina, aparentava ser mais nova. Lourinha, cabelos ondulados, dentes perfeitos, rosto angelical, tinha um ar de princesinha. Quando no jardim, parecia uma fada, uma flor entre as flores. Os raios do sol ricocheteavam nos seus cabelos formando cascatas de ouro. Extremamente sensível, apanhava no ar os desejos da mãe e dos irmãos. Os olhos muito azuis brilhavam de prazer com essas premonições. Ela prometia ser uma bela mulher. Sonhava de olhos abertos, conforme os anseios da idade. Tinha sensações indefinidas, esperando que o mundo lhe fosse trazer grandes surpresas. Gostava de ficar sozinha com pensamentos e olhos perdidos no mundo interior. Tinha verdadeiro pavor do pai e nenhum diálogo com a mãe, que só sabia dar ordens:
“Varra a casa! Olha teu irmão! Vai deitar!...”
Obedeça, obedeça, obedeça... sim, sim, sim...
Como não era ouvida, nem chamada para conversar, criou um universo particular e nele se enclausurou e se dava muito bem. Neste mundo imaginário tinha como amiguinhos duendes, gnomos, elfos, salamandras e outros personagens míticos com os quais dialogava, expunha problemas, dúvidas, alegrias, tristezas, amores e sonhos.
Quando chamada pelo pai, tremia de medo, pois quase sempre ouvia sermões, zangas ou tomava safanões.
E a procissão chegou ao cercado. Ritinha, sem razão clara, começou a tremer incontrolavelmente. Olhos esgazeados, fixos no povo, nas velas e nas chamas dançantes, que de acordo com o vento, agora mais forte, algumas até apagavam. À medida que caminhava mais inquieta ela ficava. Escondeu o rosto nas pregas da saia da mãe; com os dedos crispados segurava no tecido e dava arrancos. Força incontrolável arrastava-a para dentro. Tomou um beliscão, dois, com ordem para ficar quieta. Não obedeceu.
“Menina fique quieta!”
O pessoal, as velas, a santa, estavam ao pé da escada e Rita chorando.
“Mãe! Manda eles embora!” Chico Nico, homem de pavio curto, deu uns cascudos na filha para ela se calar, mas não adiantou.
O cortejo subia a escada de pedra, cantando:
“No céu, no céu, com minha 'starei.”
Cada vez mais desesperada com o pessoal que pisava o último degrau, Rita não suportou. Disparou para dentro e foi se esconder no quarto onde se cobriu com uma colcha.
“Tire ela daqui! Tirem! Não gosto dela, está invadindo minha casa!” repetia, sem cessar. Chorava e gritava e gemia, e todos escutavam aquilo, sem entender nada.
A mãe resolveu perguntar o que se passava. Estaria a filha ruim da cabeça? Entre soluços, limitava-se a pedir que levassem aquela figura de barro, referindo-se à santa.
Por fim, dona Almira, que não entendera patavina daquele comportamento, desistiu de levá-la à sala onde estava o altar. Cerrou a porta, trancou o quarto por fora, voltou ao grupo desculpando-se pela filha que, com certeza, estava com histeria.
E os fiéis continuaram a cantar:
“Com minha mãe 'starei, / na santa glória um dia...”
“Ao lado de Maria / No céu triunfarei.”
Enquanto durou a reza, a garota permaneceu no quarto, de vez em quando, jogava um traste na porta, assustando os rezadores. Terminada a oração, a mãe fez outra tentativa, arrancou-a do refúgio e a levou à sala para beijar a fímbria da capa da santa. Foi um desastre. Ela se contorcia, se debatia e se jogava ao chão, gritando que não queria beijar barro. Praticamente arrastada, aproximou-se do altar. A mãe segurou-a pelos cabelos e levou a fita aos lábios dela. Ela agarrou a tira que passava pela cabeça da imagem e puxou violentamente. A santa foi arrancada do nicho e atirada ao chão, quebrando em mil pedaços. Como por milagre, Rita parou de se debater; ficou quietinha, olhando os cacos. Parecia que a razão de ser daquela agitação desaparecera, a santa não existia mais. Cessada a causa, cessava o efeito.
Os fiéis presenciaram a cena, estupefatos com a violência do ato e com a mudança de comportamento. Começaram a murmurar que ali estava o diabo. Cataram os cacos para tentar uma reconstituição e trataram de dar o fora daquela casa, arranjando mil desculpas.
E os antecedentes...? Acontecera o seguinte: Ritinha era uma criança normal como todas. Então o pai aprontou uma confusão que a afetou profundamente. Meiga como uma rosa, detestava brigas, confusões e discussões, mas o pai gostava. Um dia ele a levou ao arraial para assistir à missa. O pai, após algumas libações, ficou alto e por motivos políticos, arranjou uma arenga com o frei Gálio. A zanga entre os dois foi crescendo até que, saindo da afronta verbal, partiram para a agressão física. Chico Nico, mais forte, deu uns tapas e tombos no inimigo. A turma do deixa-disso interveio e não permitiu que a briga demorasse, separando os contendores. A guerra de palavras e ameaças continuou. O cura jurou que o fazendeiro iria se arrepender e que ainda lhe pediria perdão de joelhos. Invocou o poder de todos os santos e o dele de excomungar. Embora bom, puro de coração e probo, o padre tinha um defeito: irritava-se com facilidade. Chico Nico lhe prometeu uma sova de tala. Essas ameaças foram ouvidas por todos.
Voltaram a casa. A garota em total mutismo. Ligeiros tremores lhe percorriam o corpo. O velho fazendeiro contou à mulher a desavença, aumentando as invectivas e prometendo aplicar um corretivo inesquecível no vigário, que ficaria sem a pele das costas. Citou os nomes de Pedro Sertanejo e de Pedro Pião (este quando bêbedo, rodava como tal), dois valentões, que fariam o serviço, pois não queria se envolver diretamente.
Rita ouviu tudo, com os olhos arregalados de susto. Retirou-se para o quarto, chorando copiosamente. O pai estava errado, não era justo maltratar o pároco. Sem saber o que fazer para evitar a contenda, resolveu procurar os peões citados para lhes pedir que não batessem no bom padre.
Os capangas eram broncos, analfabetos e maus. Executavam tarefas sujas ordenadas pelo patrão; não hesitavam em matar se fosse preciso. Moravam no mesmo casebre, por serem solteiros.
Chegando à casa de taipa, entrou sem avisar, pois a porta estava só encostada. O que viu a encheu de vergonha: os xarás, bandidos estavam praticando sodomia. Ela, recuperando os movimentos, girou sobre si mesma e retornou em disparada, enquanto ouvia as gargalhadas dos boçais.
O caso do padre e dos facínoras foi demais para ela, que adoeceu e, por algum tempo, exigiu os cuidados dos pais. Por enquanto, Chico Nico esqueceu a querela.
Quando Rita se recuperou, não foi mais a mesma. Cada vez mais taciturna, raramente dirigia a palavra a alguém. Um dia, encontraram-na debaixo da cama. Perguntaram por quê. Disse que estava vendo um negrinho. Ele viera buscá-la.
Neste estado psicótico, tinha visões esporádicas, onde predominava a figura do cravunco. Ora ele estava numa moita de bananeiras, ora na copa de um coqueiro, ora trepado nas tábuas do retiro e, quase sempre, dentro do quarto. Ela dormia mal e dizia palavrões por qualquer motivo.
O tempo passou, o problema permaneceu. Então o pai resolveu levá-la à igreja de Humaitá. O capelão de lá era amigo, com certeza lhe daria uma orientação. Mandou selar três animais, um para ele, outro para a mulher e outro para a filha, os últimos com silhões, mulher, por pudor, cavalgava de lado.
À medida que se aproximavam do lugarejo, a menina ficava cada vez mais inquieta e o cavalo que a levava, também. Quando avistaram o campanário, seu Chico resolveu dar de beber aos cavalos em um regato que ficava à esquerda do cruzeiro. Neste momento, um dos potros agitou, estacou, empacou e não foi possível fazê-lo andar. Desistiram de dessedentá-los.
Chico Nico amarrou o cabresto do potro de Rita no seu arreio e puxou. Dona Almira ia atrás chicoteando. Só assim puderam continuar a jornada.
Em um lugar sombrio, a estrada era engolida por um exuberante bosque de bambus, taquaras, taquaruçus e tabocas que, pelas altíssimas hastes curvadas umas sobre as outras, formavam uma espécie de túnel, um boqueirão escorregadio, úmido e frio. O local era denominado carrascal em face da grande quantidade de cristais e malacachetas ali encontradas. O pai soltou o cavalo para abrir a porteira. Uma vez aberta, Rita passou e o animal disparou. Bufando, desceu a ladeira sem que ninguém pudesse detê-lo, deixando os acompanhantes. Não se sabe como e ninguém jamais soube explicar a ultrapassagem de tantas porteiras sem que a amazona abrisse qualquer delas e sem que ela despencasse do animal desembestado.
Chegando, no adro da igreja, o ginete estacou. Ela se jogou da montaria, que partiu como um raio por um beco e dela ninguém teve notícia jamais.
Em pé, ela ficou olhando estática para a cruz no alto da torre. Os pais apearam, amarraram os animais em uma árvore na pracinha, e seguraram-lhe as mãos geladas.
“Vamos entrar na igreja” ordenou o pai.
Ela nem se mexeu. Recebeu um arranco. Nada. Parecia uma pedra bem assentada no solo. O velho sentiu que não conseguiria desse modo; colocou-a no colo. Ela estava tão pesada... Um peso formidável, insuportável. Depositou-a no chão e, desanimado, olhou para os lados num pedido mudo de socorro.
Dona Almira a tudo assistia abismada. O povo ia chegando pelo insólito da cena; por fim, fizeram um círculo em torno dos três: pai, mãe e filha, desamparados, patéticos e grotescos na praça.
A missa terminou. Os fiéis iam refluindo do interior da ermida e aglomerando no átrio. Dali observaram aquele pequeno grupo. Curiosos foram até eles, logo formaram uma multidão. O reverendo, nesse momento, assomou à porta principal ainda paramentado. Indagou o que se passava. Uma beata colocou-o a par da situação. Adivinhou que os viajores o procuravam, para eles se encaminhou. Com cotoveladas, empurrões “com licença”, ficou frente à frente com os três.
“O que tem ela?”
Cumprimentaram-se e o pai, em voz baixa, explicou concisamente o caso. O eclesiástico determinou que ela fosse levada para o interior da nave. Aí estava a dificuldade, não havia jeito de fazê-la caminhar. Estava fixa no solo. Três homens avançaram para ajudar. Seguraram nas pernas e nos braços, puseram-na em posição horizontal e levaram-na até à entrada. Impossível ir adiante, ela pulava, debatia-se, agitava, esticava e encolhia. Liberava um braço ou perna, chutava, caía no chão, serpenteava entre as pessoas até ser agarrada de novo. Não falava, dentes cerrados e lábios apertados deixavam escorrer uma espuma esverdeada. Os olhos vidrados. O quadro espantava. Desistiram da tarefa e a colocaram na entrada do templo, sobre um matacão, para deliberarem o que fazer. Alguns persignavam.
O povo assustado e temeroso segredava:
“É o demônio, nunca vimos nada igual.”
Rezavam em voz baixa o Creio em Deus Padre.
O ministro do Altar ficou pensativo por minutos, depois pediu que a levassem à casa paroquial, o que foi feito com muita facilidade; não houve resistência. Arrumaram às pressas uma cama onde ela foi deitada. Estava tão exausta que permaneceu inerte, como morta, esgotada pela luta para não entrar na igreja.
Acalmada a situação, a multidão se dispersou, ficando poucas pessoas para ajudar em qualquer eventualidade. Havia muita expectativa.
Serviram café e outros alimentos, que os viajantes comeram com satisfação, exceto a doente, que permanecia prostrada, alheia a tudo o que se passava ao redor.
Descansados, pai e mãe foram minuciosamente interrogados e relataram a história completa ao religioso, que tomou conhecimento das blasfêmias de Chico Nico, da briga com o frei Gálio, da praga recebida, de tudo.
Seguiu-se então longo silêncio. Todos meditavam sobre as mazelas daquela família. O guia das almas aconselhou:
“Temo que ela esteja endemoninhada. Infelizmente, se for o caso, não tenho autorização do senhor bispo para exorcizá-la. A igreja tem prelados especialmente treinados para isto. Recomendo que procurem um.”
“Vim aqui no maior sacrifício, porque é meu amigo, agora o senhor diz que nada pode fazer. Estou frustrado, decepcionado. Sou um homem desesperado. Ajude-me!” exclamou o pai de Rita.
Arruda, este era o nome do capelão, não se tinha como competente. Julgava-se medíocre, mais ainda, um pecador. Gostava muito dos óbolos dos fiéis, reclamava do seu pão-durismo, dizendo que padre também comia. Apascentava as ovelhas mecanicamente, de forma disciplinada e sem inovações. Como paciente sacerdote do povoado, realizava um bom trabalho: casamentos, batismos, confissões, extrema-unção, encomendas de mortos; coordenava as festas anuais a favor do padroeiro, fiscalizava o fabriqueiro para evitar deslizes financeiros; oficiava a missa aos domingos, dias santos e por solicitação. Neste ofício e ocasiões alternavam nas homilias, os surrados chavões contra os maçons, os ateus, os crentes e os espíritas, mas sem ênfase, grande fé, nem entusiasmo, pois era um tanto relaxado com as coisas da religião. Não esperava que os fiéis o levassem a sério.
“Posso tentar” disse o padre. “Para mim o caso é muito grave, vou fazer um teste; se for possessão, saberei.”
Mandou o sacristão ir à igreja apanhar no cibório uma hóstia consagrada. Logo que a teve em mãos, tentou introduzi-la na boca da garota; não foi possível, ela cuspiu.
“Não como esta porcaria” disse com voz rouca. Padre Arruda desistiu. Virando-se para o pai, aconselhou:
“Considerando que os sintomas são evidentes, não vou fazer mais experiências com ela, pois poderá perder a vida e a alma imortal; a solução, já dei: achem um exorcista.”
Embora contrariados, os pais tiveram que concordar; pernoitaram na casa paroquial e, na aurora, partiram, para alívio do clérigo.
A possessa melhorou consideravelmente quando iniciaram o regresso. Até se podia pensar que ela estivera fingindo tal a transformação. O rosto pálido agora estava rosado. Tagarelava com a mãe, ria das coisas tolas, acompanhava com os olhos o vôo dos pássaros, parava o cavalo e descia para colher uma rosa silvestre. O pai desconfiava do que via. Achava que estava sendo ludibriado. Intimamente, julgava a filha leviana e mimada. Talvez estivesse fazendo um papel para ser notada.
“Espero que Ritinha não esteja me enganando. Que será que está me aprontando? Quem sabe se um bom corretivo? Veremos isto lá em casa.”
Ao passarem perto da velha figueira calcinada Rita emudeceu, algo enganchou na garupa do seu cavalo, que se achatou, como se carregasse pesado fardo para suas forças. A coisa só pulou fora na entrada da malhada. Era o moleque-preto.
Chovia torrencialmente, os cavalos patinavam nas pedras e afundavam as patas entre elas. Os familiares e colonos da fazenda Jurema/Buriti esperavam no alpendre os patrões que, muito antes de aparecerem, foram anunciados pelos latidos dos cães. Noite escura, os lampiões, lamparinas e velas davam um tom irreal à cena. A batida das patas no esterco molhado: ploc... ploc... ploc... O uivo dos mastins, guarda-chuvas abertos, capas, tudo contribuía para aquela fantasia.
O sacudir das lanternas dos empregados, que se aproximavam para ajudar, assustou um dos corcéis que, empinando, jogou Chico Nico no chão.
“Com seiscentos mil diabos! mato este cavalo.”
Levantou rapidamente e desancou o pobre animal com o cabo do chicote. Um serviçal pegou o cabresto e se afastou celeremente, livrando-o da sanha do dono.
“O que se passou na nossa ausência?” perguntou. “Nada, senhor” respondeu um empregado.
Mesmo que tivessem problemas, a resposta seria a mesma, ninguém queria incorrer na ira do patrão.
Entraram. Nesta hora, a menina deu um berro e caiu desfalecida. Correram para todos os lados à procura de socorro: esfregar pulsos, sal, vinagre, éter e amônia. Voltou a si, mas não era ela. Notava-se principalmente pelos olhos opacos, sem vida, com a esclerótica revirada. Emitia sons guturais completamente estranhos a sua meiguice natural.
O ÍMPIO
O presbítero estava agoniado por demorar tanto na viagem, esquecia a cautela e apressava o possível, para atender o chamamento do Chico Nico, mas o cavalo estava cansado, sobrecarregado com duas pessoas, poderia afrouxar, queria evitar novos acidentes. Andava sempre, só parava para os descansos essenciais e alimentação. Curiosamente, dois sentimentos antagônicos o espicaçavam: queria conhecer o problema e tinha medo de encará-lo. Parente longínquo do dono da fazenda Jurema, há muito não o visitava. Conhecia bem a fama do mau-caráter. Valendo-se do parentesco, Chico Nico lhe escrevera, contando-lhe os apertos e convidando-o ou, melhor, intimando-o para uma visita.
Recebera a correspondência e pusera-se a cismar sobre a situação. Estivera tentado a rejeitar, mas não ousara. Não se considerava um santo, nem era versado em temas demoníacos. Sabia, porém, que o parente de gênio intratável jamais lhe perdoaria se não comparecesse. Depois de tomar algumas medidas na freguesia, avisou ao sacristão que iria se afastar por alguns dias. Qualquer recado urgente deveria ser encaminhado para a fazenda Buriti.
Enquanto tomava essa decisão, raciocinava. Foi por acaso que se tornara sacerdote. Último irmão de uma família de doze, e pobre, cresceu com os demais, livre de educação e com trabalho pesado. Um dia, no arraial em que moravam, sucedeu a semana das missões. Missionários promoveram conversões, casamentos e batismos. Havia muita festividade. O garoto observou que os pregadores eram saudáveis, alegres, bem nutridos e respeitados. Chegou à conclusão de que a vida religiosa lhe convinha, por esses motivos. Se enturmou com os redentoristas, ajudou-os a celebrar missa, fazia-lhes as vontades, arranjava o altar, participava das procissões e da limpeza da igreja. Foi tão simpático e fervoroso que acabou sendo convidado a tentar o ministério religioso. Aceitou de pronto, pois viu aí a grande oportunidade para escapar do marasmo da vila e da vida. Os pais reagiram fracamente a tão recente vocação, contudo, os padres os fizeram ver que a sorte sorrira ao menino e que um futuro brilhante o esperava. Concordaram. Uma boca a menos para alimentar fez a diferença.
Findas as missões, o menino partiu com os predicantes, largou para trás parentes, amigos e trabalho.
A vida no seminário era dura, duríssima, penosíssima mesmo. Levantava-se às quatro da manhã: rezas, orações, ladainhas, missa, estudos da Bíblia, latim, grego, religião comparada, filosofia, psicologia, ciências, sociologia e trabalhos diversos, por cinco anos. A comida saudável, sem exageros. Muitas vezes pensou em desistir; entretanto, lembrava das privações e da vida medíocre que o esperava no povoado, ganhava ânimo e continuava os estudos. Mas não tinha mesmo vocação para o ministério. O sangue quente por qualquer motivo punha-o às turras com os colegas. Além disso, tinha pensamentos pecaminosos. Ele mesmo se apanhou diversas vezes divagando sobre as formas femininas das santas. Transportando as idéias para as meninas, via-as nuas e ele roçando as mãos pelas carnes macias e quentes, sedosas, procurando com os dedos acariciar-lhe os peitinhos, mergulhando voluptuosamente nas partes íntimas. Um mundo de tentação, desconhecido e maravilhoso. Alisava o sexo, suspirava de prazer, tinha poluções fortes em sonhos. Não demorou a encontrar colegas afeminados que se dispuseram a satisfazê-lo em seus anseios por mulher. O hábito faz o monge, um adágio popular, não valeu para Afonso. O noviço logo que envergou o estamenho se julgou autorizado a praticar todos os absurdos que lhe vinham à telha. Tornou-se um prelado libidinoso, sem-vergonha, salafrário e iconoclasta. Em um acesso de fúria pegou um facão e degolou todos os santos e santas da igreja. Pôs as cabeças num saco de aniagem e enterrou-as no adro. Colocou os corpos decepados empilhados na sacristia. Em outra ocasião, muniu-se de um martelo e se dirigiu ao cemitério onde depredou cruzes, lápides, túmulos e anjos. Tudo foi destroçado. Os crentes, horrorizados, pediram ao bispo seu afastamento da paróquia, sem sucesso. Tirassem-lhe a batina, apareceria o demônio, o tratante. Tinha a alma, o corpo e a mente maus, perversos, e impulsos homicidas. Algumas vezes sacou o ponto .38 para ameaçar os paroquianos. Existia outro complicador. Tinha namorada ou, melhor dizendo, amásia. Por isso era objeto de fofocas e de galhofas. Diziam que, no início do namoro, escrevera um bilhete à amada reclamando que o amor sem beijo era igual o doce sem queijo. Verdade ou não ele era desmoralizado o bastante para temer as forças do mal. Este foi o ministro chamado para exorcizar a filha de Chico Nico. O insucesso era previsível.
O que quer que possuísse Rita não tinha o menor receio do eclesiástico. Sabia que ele vendia hóstia aos pobres quando da comunhão pascal. Dera-lhe um tombo no morro da Fumaça e ainda tinha outros recursos. Em tempo oportuno seriam mostrados.
Padrinho, o padre e afilhado estavam serpenteando morro abaixo em direção à fazenda Jurema/Buriti. Mais quatro horas e chegariam ao destino. Desciam devagar, pois o monte, envolto em névoa translúcida, dificultava muito o caminhar, da montaria.
O garoto agarrava com força a cintura do cura que, para evitar outros tombos, conduzia com extremo cuidado.
O calor do jovem estava provocando pensamentos lúbricos no padrinho que, entretanto, sabia se conter. O menino, muito curioso, o interrogava a miúdo sobre o problema que iriam enfrentar. O pároco procurava explicar:
“Meu filho, segundo nossa crença e com base em texto da Escritura Sagrada, o diabo ou que nome tenha é uma entidade má que existe desde o princípio do mundo. Conta-se que ele convenceu Eva, no paraíso, a comer a fruta da árvore do bem e do mal, e enganou Adão, o primeiro homem que comeu da mesma fruta. Ambos foram expulsos por terem desobedecido às ordens de Deus. Nossos sofrimentos decorrem desse fato.”
— Quem criou o diabo?
— Deus criou os anjos. Um deles se rebelou; chamava-se Luzbel. Na hierarquia angélica era um Serafim. Ele, formoso, orgulhoso e invejoso, queria ser igual a Deus. Houve uma batalha no Céu. Os anjos comandados pelo arcanjo Gabriel venceram. O rebelde e companheiros foram lançados no inferno. Há quem diga que esse inferno é na terra, onde habitamos. Pessoalmente, estou de acordo com esta versão: estamos no inferno, mas o excomungado precisa de um quartel-general de onde administra os domínios e mantém as instalações para os tormentos. Satã, Demônio, Lúcifer, tem incontáveis nomes e nos persegue sem cessar ou descanso, tentando-nos para cairmos em pecado mortal e perdermos nossas almas. É uma luta terrível entre o bem e o mal. Aqueles que caem em erro vão sofrer penas eternas e serão assados no fogo do Inferno. Os que não fraquejarem irão para o céu, a mansão dos bem-aventurados, e contemplarão Deus. Outros que cometeram pecados de grau leve passarão algum tempo no purgatório, até que as rezas dos católicos e o beneplácito do Senhor os tirem de lá. Quanto à atuação de Satã, ela se apresenta de vários modos: infestação, obsessão e possessão. Esta é a mais grave. Ele toma um corpo e começa a comandá-lo, aí faz prodígios. Tem força fora do comum, lê pensamentos, adivinha o passado e o futuro, fala e compreende línguas estranhas. Não suporta objetos sagrados. Dizemos, nesse caso, que o indivíduo está possuído, possesso ou endemoninhado.
— Isto acontece muito?
— Certamente. O mundo é perverso. Grandes pecadores estão aos montes por aí. Vez por outra, o demo quer levar alguém para as profundezas. Quase sempre são jovens, porque são mais frágeis, ou melhor, mais imaturos. Ao mesmo tempo, servem de exemplo aos pais, que vêem concretizar-se, materializarem-se as maldades e impiedades. Menino, não sei se você suportará o que está por vir; em todo o caso mandá-lo-ei de volta, se desistir.
— Não! Quero ficar e ajudar, se for possível, e estou muito contente.
Enquanto conversavam, terminavam de descer a trilha do morro da Fumaça. O longo caminho findou sem problemas; apenas um escorregão aqui, outro acolá, davam pequenos sustos nos cavaleiros. Entraram na planície enlameada que antecedia Santa Bárbara, atravessaram o lugarejo e horas depois estavam no cercado da fazenda.
Dentro de casa de fazenda o cão gargalhava antegozando a vitória, pois o homem de saia tinha culpa no cartório.
Foram recebidos por Chico Nico, que segurou com uma das mãos o freio e o cabresto para o tonsurado apear com maior segurança, ao mesmo tempo em que dava a outra mão ao garoto para ajudá-lo a pular da garupa. Com calorosos cumprimentos, o fazendeiro convidou-os a entrar.
Na ante-sala esperavam os demais membros da casa, parentes, serviçais e hóspedes, sempre cheia de curiosos que vinham ver a energúmena. Feitas as devidas apresentações, o visitante pediu para ser conduzido à infeliz padecente, no que foi prontamente atendido. Tinha a secreta esperança de que fosse um caso de epilepsia ou outra forma de doença mental. Dirigiu-se ao quarto; a mãe abriu a porta e adentraram no recinto. O ambiente frio, fracamente iluminado, pesado, exalava velas, desinfetante, urina e fezes. Os olhos do padre, aos poucos, foram se acostumando com a escuridão; ele a viu deitada de bruços. Pegou a candeia e se aproximou da cama. Ela, com as faces voltadas para o canto, rápido se virou. As bochechas encovadas, os olhos vítreos, a espuma no canto da boca, formavam um quadro dantesco. Afonso desviou os olhos. Rita sentou-se, como se movida por uma mola, estendeu a mão em direção ao sacerdote e com voz roufenha:
— É este que veio me tirar? Ele tem amante! A carta da namorada está escondida no bolso da batina!
O espanto foi geral, o estupor do vigário, doloroso.
CRIME E CASTIGO
Do inescrupuloso vigário começara com o caso, carta. O garoto, que se esgueirara entre ele e o batente, vira, atônito, o entrevero do padre com o diabo, com a derrota preliminar daquele que, ao ouvir as invectivas, se fizera rubro de vergonha. Logo se recompôs, fez o sinal-da-cruz, como uma bênção em direção à menina e pronunciou as palavras-chave:
— Vade retro, Satana!
O tal não se dignou a obedecer. Emitiu gases, deu uma gaitada. Fez a menina virar de costas, levantar o vestido e mostrar o traseiro.
— Tragam meus paramentos — solicitou o padre, traquinas.
Buscaram a caixa de folhas-de-flandres, na sala. Abriu-a e pegou, rápido, a galheta com água benta e aspergiu a garota.
— Está me machucando, pare de jogar esta água suja.
Rita, ou melhor, a coisa que a incorporava, se encolheu no canto e tapou o rosto com as mãos. Ao mesmo tempo, a tranqueira abriu com barulho. Vacas leiteiras e crias, que tinham sido apartadas, se misturaram. Correria para separá-las. Ninguém abrira a porteira. Todos sabiam que era arte do tição.
O prelado aproveitou a confusão e se retirou do quarto. Após conferenciar com Chico Nico, informou que jejuaria por alguns dias, para ganhar forças antes de terçar armas com o maldito. Solicitou e obteve um local amplo, totalmente isolado e nele se instalou, com recomendação expressa para não o incomodarem. Queria ficar isolado no período de abstinência. Pediu para o menino Antônio atendê-lo quando chamasse. Foi obedecido.
Nos três primeiros dias, cumpriu à risca todos os preceitos. Levantava as cinco, oficiava a missa, no que o garoto diligenciava para ajudá-lo. Ele não entendia o ritual da Santa Missa, principalmente aquelas palavras em latim; entretanto ajudava compenetrado e com boa vontade. Passava o missal da direita para a esquerda e vice-versa, punha vinho no cálice, fazia e desfazia o altar, arranjava e guardava as vestes litúrgicas.
— Dominus vobiscum — orava o oficiante.
— Et cum spiritu tuo — respondia o garoto, como papagaio.
No quarto dia, o reverendo não aguentou a fome e pediu a Toninho para trazer, à sorrelfa, alguns pedaços de carne, acompanhados de um pouquinho de arroz e salada. Daí em diante, o jejum foi uma palhaçada. Empanturrava-se todos os dias às escondidas. No duro, estava com medo de enfrentar o sarnento. Dava tratos à bola para achar uma saída honrosa, sem desagradar a família.
O padre pilantra tinha segundas intenções em relação ao afilhado. Desde a viagem vinha alimentando pensamentos escusos. Começou por conquistar-lhe a confiança. Falava sobre o desejo dos jovens, procurava dar sentido dúbio às palavras, utilizava sofismas, evidenciava que as atrações sexuais atendiam a sentimentos naturais, mesmo entre pessoas do mesmo sexo. Procurava valorizar a convivência harmoniosa entre homens. Passava, distraidamente, a mão no rapazinho. Quando julgou que ele estava doutrinado, pretextou estar com dores e pediu que o massageasse. Teve uma ereção, tentou agarrá-lo. O garoto se desvencilhou, correu para o quarto e trancou a porta com a taramela. Estava desconcertado, furioso, colérico. As pessoas em que confiava eram tão desprezíveis. Primeiro o tio, agora o padrinho. Procurou, inutilmente, entender os motivos; de ingênuo nada tinha, conhecia alguns segredos, por isso se revoltou com as artes do vigário. Embora precoce, não maliciava tudo e nem conhecia a extensão da maldade humana. Sentimentos conflitantes fervilhavam no cérebro. Raiva, perdão, ódio. O que fazer? Denunciar, calar, ignorar ou silenciar?
“Deus do céu! Cometera algum pecado?”
O sacerdote, no dia seguinte, deu por encerrado o jejum falso e se dispôs a enfrentar o rabudo para acabar logo a tarefa. Muniu-se de um crucifixo, hóstia consagrada, água benta e entrou no quarto da endemoninhada. Foi recebido por uma catapulta de injúrias, excrementos, pedras e outros objetos.
— Miserável, desavergonhado, serás meu ajudante no inferno! Sujo, patife, imundo! Tu não prestas! Como tens coragem de ser padre? És meu companheiro! Fora!...
Não pôde reagir. Afastou-se balbuciando palavras incoerentes, algo como o pai-da-mentira. Pediu um cavalo arreado e partiu como um raio. Mais um derrotado.
Não voltou ao presbitério nem a lugar algum... Muito tempo depois fora visto errante pelas estradas, montes e várzeas, em diálogo permanente com as sombras. Babava como um cão danado; a saliva escorria pêlos cantos da boca, empapava a camisa que ficava suja e pegajosa, com um aspecto repugnante. Um dia foi apanhado furtando linguiças dependuradas no varal sobre o fogão de lenha em uma casa. Internaram-no em hospício, onde teve que se haver com os demais doentes mentais. À noite tinha sonhos, pesadelos e visões. No paroxismo da loucura, apontava para os cantos gritando: — É ele, é ele, que veio me buscar! — Ficou agressivo, louco furioso; atacava todos com dentadas e resistia violentamente aos enfermeiros. Vestiram-lhe uma camisa-de-força e o jogaram no isolamento, onde urrava, gemia e investia contra as paredes. Aplicavam-lhe, rotineiramente, doses maciças de sedativos e eletrochoques. Quando as lamentações e os gritos se tornavam insuportáveis, um brutamonte entrava na cela e lhe dava uma sessão de pancadas.
Sem comida, sem tratamento adequado, sozinho, abandonado por todos foi definhando cada vez mais. No final da vida, teve um lampejo de razão e pediu um confessor, para lhe dar o perdão dos pecados. Isto também lhe foi negado, porque um louco não tem o que dizer e assim, ele morreu chafurdado nas próprias imundícies, após longa agonia e sofrimentos atrozes.
Eis o fim do clérigo abominável e corrompido, que semeou ventos e colheu tempestade.
DIABRURAS
Na fazenda Jurema só aumentavam porque o torto estava cada vez mais furioso. Depois do episódio do padre desregrado e degradado, o demo fazia os maiores esforços para enlouquecer a família. Levitava Rita que, de frente para a parede, subia para o teto, mansamente. Nesta hora, a voz fraquinha do anjo da guarda pedia:
“Tragam o menino para me ajudar.” Toninho era iluminado, era puro, segurava a mãozinha dela, enquanto rezava:
Santo anjo do Senhor, meu zeloso guardador, a ti me confiou a piedade divina. Sempre me rege e guarda, governa e ilumina. Amém.
Ela descia vagarosamente e desfalecia na cama. Por um dia ou noite não dava sinal de vida.
Toninho começou a se tornar imprescindível junto à Ritinha. Por ela tomou grande afeição e sofria por vê-la passar por tamanha provação pelas forças do mal. Ele não entendia como aquilo podia acontecer com ela; tão boazinha. Onde estavam os poderes de tantas orações, antífonas, salmos e apelos aos santos protetores?
Chico Nico não mais entrava no quarto da filha. Tinha receio das verdades e dos palavrões, como também das agressões da entidade que habitava aquele corpo.
Acontecia de a coisa se desincorporar para aprontar umas e outras. Soltava os porcos que se espalhavam pela várzea, dando o maior trabalho para juntá-los; punha o moinho a moer pedra; espantava as vacas na hora da ordenha; misturava fezes de animais na comida; promovia aportes que atravessavam telhados e paredes sem quebrar telhas ou fazer buracos; às vezes chorava a noite inteira. Era uma calamidade. Quando reincorporava em Ritinha, fazia caretas, gestos obscenos, subia pelas paredes, vomitava matérias fétidas. Atirava o que tinha na mão, nos outros. Só o rapazinho tinha o dom de acalmá-la.
As pessoas que ousavam entrar no quarto eram vítimas de brincadeiras infames e ouviam verdades indiscretas. O tal se deliciava em desvendar segredos íntimos. Amantes foram desmascarados, beatas vilipendiadas, enfim tudo acontecia e se podia esperar do príncipe infernal.
A avó da menina um dia resolveu visitá-la. Católica praticante talvez pudesse ser de alguma valia. Antes que ela saísse de casa o capeta pressentiu e ameaçou:
“Lá vem a velha coroca, da fazenda Cachoeira, com aquela corda de tento e de sabugo de milho” referindo-se ao rosário. “Não adianta, aquelas continhas não me tiram.”
Dona Umbelina, a avó, chegou, rezou, cantou hinos, jaculatórias e responsórios. Sofreu o tempo todo com as zombarias do diabo. Perdeu a paciência com uma gozação mais forte e bateu com o rosário na possessa.
“Pare de me bater, velha caduca. Ai... ai... aiiiiiiii!” Arrebentou o biurá, e as lágrimas-de-nossa-senhora se espalharam pela cama e por todos os lados.
Os assistentes, de cabelo em pé, escafederam-se.
A situação estava por demais fora de controle, trágica. Impossível continuar a pantomina. Muitos adoeciam.
Chico Nico tomou uma resolução: chamar o padre santo que morava na casa paroquial, anexa à igreja matriz de uma grande cidade. Um exorcista de fama e grande poder. Chamava Simeão Hauck. Ele recebeu o fazendeiro com carinho e pediu que relatasse o que se passava.
Sem muitos rodeios, contou-lhe toda a história, inclusive a demanda com o frade. Foi uma catarse, uma confissão, um grito de socorro.
Simeão deu os seguintes conselhos: o homem deveria observar rigoroso jejum, distribuir esmolas, pacificar inimigos e adversários; parar os xingamentos, cessar as perseguições, adotar um sistema de vida piedoso e desculpar-se com o padre injuriado, de joelhos, se ele assim o exigisse. Prometeu examinar o pedido e, se necessário, iria até à fazenda. Por enquanto, faria orações à distância.
O fazendeiro arrependido cumpriu os mandamentos: mudou dramaticamente o comportamento. Confessou e comungou, o que não fazia há muitos anos; perdoou alguns inadimplentes; renegociou hipotecas de outros, promoveu a paz com o frei Gálio, humilhando-se publicamente e pedindo perdão pelas ameaças; jurou nunca mais se exceder em bebidas; deixou substancial ajuda, em dinheiro, para os pobres da freguesia. Doravante se dispôs a ser um homem caridoso e de bons costumes. Também pudera, com anos tendo o diabo como inquilino!
Teria Deus tocado aquele coração de pedra? Seja, mas a inexorável, a inescapável lei de causa e efeito, a justiça infalível seria feita. A misericórdia divina é infinita. Ela daria ao espírito daquele homem tantas ocasiões quantas fossem necessárias para se remir os pecados.
Na fazenda, continuava a confusão como dantes. O capa-preta aprontava poucas e boas como se estivesse revoltado com a súbita religiosidade do fazendeiro. O inferno o esperava. Não aceitaria, sem luta, a perda da presa.
Ritinha não se levantava, exceto quando possuída, tomada pela entidade. Então assumia a força de dez homens.
Ninguém podia detê-la. Relinchava e latia, tal como os animais. Quebrava imagens sagradas e como sempre levitava. Aí chamavam o menino. Ele entoava a oração de sempre e a repunha na cama.
Toninho, sem o saber, amava Rita. Este amor foi bom para ele, que jogou para o subconsciente os traumas dos abusos do padre e de um tio. Gostava de ficar no quarto dela tanto quanto lhe permitiam para ajudá-la nos transes difíceis.
Ao soar da meia-noite, o trevoso se apossou dela e iniciou uma cantilena com voz soturna e plena de deboche:
“Garoto, há muito tempo venho lhe seguindo os passos. Assisti o seu nascimento, na verdade, acompanhei-o na barriga da mãe. Fiz o possível para complicar a gravidez, pretendia matá-lo. Não consegui, havia disposições superiores mais fortes do que a minha vontade. Tive que ceder, porém designei um auxiliar para espioná-lo sem cessar. Verrine tem correspondido e me mantém a par de tudo. Dificulta sua vida, mata as esperanças, procura lhe dar "bons" momentos de tristeza, enfim nós o prejudicamos sempre e temos planos mais detestáveis. Seria melhor negociarmos. Quer ser dos meus? Está confuso? Curioso? Quer meu nome? Por ora, saiba que sou aquele que manda: o chefe. Duvida do meu poder? Respondo com uma descrição. Eu moro pertinho da fazenda da Legalidade. Do outro lado está a fazenda Cachoeira, da avó desta menina. A velha beata vive rezando. Não adianta, sou insensível às orações; por via das dúvidas, não me envolvo com ela. Não tenho medo nem do papa, alguns deles são meus hóspedes. Entre as fazendas passa a estradinha, quase uma trilha. Paralelo, segue um riacho que, na divisa, faz uma curva e transforma-se numa corredeira. Um pouco antes, há uma ponte. Tiveram a boa idéia de cobri-la para proteger barrotes e pranchões do sol e da chuva. Muito bom... é na ponte coberta que estou quando não aqui. Eu me divirto assustando viajantes, cavaleiros, tropeiros e provocando estouros de boiada. O que acontece de ruim lá é minha obra. Vamos, agora ao importante: você tem me atrapalhado muito. Vamos negociar?”
— Como? Sou apenas um menino. Pelo que ouvi, me persegue desde que nasci. O que quer aqui?
— Você sabe o que o pai dela disse quando soube da gravidez? Ficou muito zangado e falou sem rodeios: "A minha parte, eu a dou para o capeta".
— Ah, meu Deus! — exclamou o menino horrorizado.
— Tenho meus direitos, vim reivindicá-los.
— É mentira! — contestou, veementemente, Toninho.
— Que seja! não tenho compromisso com a verdade. Acho bom você ir embora.
— Vá você ou pare de tentar os outros.
— Vamos entrar num acordo, não conto seus segredos.
— Seja quem for não faço tratos. Deixe-a em paz.
— Parece uma velha teimosa. Sei dos seus pecados com o tio e com o padrinho, de batina.
— Abusaram de mim. Não tenho culpa.
— Olha aqui, ela me pertence, o pai já é meu.
— Ela é de Deus como um anjo puro.
— Fedelho, se eu quiser faço você voar pela janela.
O garoto apelou para a fórmula: Vade retro...
Uma grande explosão sacudiu todos os móveis, a fazenda tremeu nos alicerces. Um cheiro nauseabundo se fez sentir. Aporta se abriu com violência, um bicho preto, vindo não se sabe de onde, pulou na sala, a seguir na janela e mergulhou na escuridão.
Donde se explica que as fórmulas cabalísticas não valem por si mesmas; dependem da pureza do coração de quem as pronuncia. E Toninho era puro, apesar de tudo...
O garoto saiu gritando. Algumas pessoas acudiram. Ele contou tudo e alertou que o acontecimento se dera logo após as doze badaladas da meia-noite. Ficaram olhando para ele um tempão, por fim, disse dona Umbelina:
— Estranho, não ouvimos nada. O velho relógio há muito não marca horas, sequer tem corda.
Nos momentos de lucidez, Ritinha conversava com Toninho e lhe perguntava como se portava quando estava fora de si. Ele contava amenizando, suavizando, minimizando aquelas partes mais chocantes, grosseiras e imundas. Por exemplo, não citava que ela levantava a saia na presença de pessoas, que ria e debochava das imagens dos santos e que as esfregava no corpo simulando intenso prazer, que vomitava matérias fétidas e repugnantes e outros pormenores indecorosos.
Entre aqueles jovens se desenvolvia uma grande simpatia. Ela, muito frágil, dependente e muito carinhosa; ele, por sua vez, só faltava adivinhar os pensamentos dela.
— Quando eu sarar— dizia— vamos passear pelos campos, assistir às festas nos povoados; papai, certamente dará um baile e dançaremos muito.
Ele suspirava e sonhava com este porvir, embora não acreditasse convictamente que ela se curaria algum dia. Estava tão doentinha que ele temia o pior.
Tarde da noite, todos haviam se retirado para os respectivos quartos, somente os dois estavam acordados, conversando trivialidades. Ele aproveitou para ler uma poesia que havia descoberto entre as folhas do livro de tombo:
"Pergunta pras estrelas
se de noite me vêem chorar.
Pergunta se não procuro
a solidão pra te amar.”
“Pergunta pro manso rio
se o pranto meu não vê correr.
Pergunta pra todo mundo
se não é fundo meu padecer."
Um tropel de cavaleiros se fez ouvir e interrompeu aquele momento de ternura.
— Será que é o papai que está chegando?
Não era. Os viajantes pareciam muitos. Desceram dos cavalos que relinchavam e pisoteavam a lama: plac, plac, plac. Os cavaleiros subiram a escadaria de pedra batendo as esporas contra elas, conversavam e insultavam uns e outros, sem cerimônia. Acessaram a ante-sala. O alarido dos cães e o ruído dos recém-vindos zoavam pela casa. Atravessaram vários cômodos e foram parar na cozinha. Utilizaram panelas, frigideiras, pratos e talheres. Fritaram e cozinharam alimentos, falando em voz alta. Depois de saciados, quebraram pratos, atiraram facas e garfos na cristaleira, derrubaram mesas, cadeiras e foram embora. No dia seguinte, não havia sinal dos visitantes. Nenhum prato quebrado, nenhuma faca, garfo ou colher fora do lugar, nem mesa, nem bancos removidos, nem vidros quebrados, nem restos de comida. Ninguém, exceto os dois, observara algo insólito. Toninho, preocupado, achava que também estava ficando doido.
O novo Chico Nico, recém convertido, depois de confabular com a mulher, convocou todos os parentes e visitantes para rezarem uma novena, pedindo a proteção de Nossa Senhora. Aqueles que lá estavam, só por curiosidade ou para a farra, foram gentilmente convidados a partir, ficando apenas os realmente interessados na solução do problema.
O pai reentrou no quarto da filha. Ela estava quieta, aparentemente normal. Só os olhos opacos denunciavam a presença do impuro.
O terço do santo rosário em louvor do divino Jesus foi a primeira tentativa séria para expulsar o mal. Chico Nico puxou:
— Pelo sinal da Santa Cruz, livrai-nos Deus, Nosso Senhor, dos nossos inimigos.
A garotinha repetiu com trejeitos irônicos e, fazendo os gestos ao contrário, ou seja, de baixo para cima e da direita para a esquerda.
Ninguém se atemorizou. Continuaram:
— Em nome do Padre, do Filho e do Espírito Santo. Amém.
A coisa escarneceu:
— Buuu!... merda. Ra, rá, rá.
— No primeiro mistério, contemplamos como a virgem Maria foi saudada pelo anjo e lhe foi anunciado que havia de conceber e dar à luz a Cristo, nosso Redentor.
— Padre-nosso que estais nos céus. Santificado seja o vosso nome. Venha a nós o vosso reino. Seja feita a vossa vontade, assim na terra como no céu. O pão nosso de cada dia nos dai hoje. E perdoai-nos as nossas dívidas, assim como nós perdoamos aos nossos devedores. E não nos deixeis cair em tentação. Mas livrai-nos do mal. Amém.
O ser diabólico repetiu tudo ao contrário, com intenção de causar a maior confusão, o que conseguiu, mas sem esmorecer a fé religiosa do pessoal.
Os crentes continuaram:
— Glória ao Pai, ao Filho e ao Espírito Santo. Assim como era no princípio, agora e sempre, por todos os séculos dos séculos. Amém.
Após o padre-nosso e a glória ao pai, rezaram por dez vezes a ave-maria, correspondendo às meditações dos cinco mistérios, suportando, imperturbáveis, as gozações.
Às vezes oravam em latim: Gloria Pater et Filio et Spiritni Sancto.
— Eu sei latim: — Per omnia saecula saeculorum. Debochava o demo.
A coisa ironizava, contorcia-se na cama e vociferava:
— Cambada de patifes, prostitutas. Saiam do quarto. Deflorador e explorador de mulheres, esse Chico Nico vagabundo, filho de escravo, assassino. Miseráveis, piedosos de fachada à noite vão gozar nos braços das amantes. Todos têm encontro marcado comigo.
E o pessoal firme:
— Salve, Rainha, Mãe de misericórdia, vida doçura esperança nossa salve; a vós bradamos os degredados filhos de Eva; a vós suspiramos, gemendo e chorando neste vale de lágrimas. Eia, pois, advogada nossa, esses olhos misericordiosos a nós volvei; e, depois deste desterro, mostrai-nos Jesus, ó clemente, ó piedosa, ó doce sempre virgem Maria. Rogai por nós, Santa Mãe de Deus, para que sejamos dignos das promessas de Cristo.
— São Miguel Arcanjo, protegei-nos no combate. Cobri-nos com vosso escudo contra os embustes e ciladas do Demônio. Subjugai-o, Deus. Instantemente Vos pedimos, e vós, Príncipe da milícia celeste, pelo divino poder, precipitai no Inferno Satanás ou outros espíritos malignos que andam pelo mundo para perder as almas. Amém.
A possessa começou a jogar imagens, velas, ícones, travesseiros, roupas, o que estava próximo sobre o grupo. Contudo, eles continuavam impávidos. Então ela começou a levitar lentamente. Primeiro, ficou inteiramente retesada na posição horizontal sobre a cama. Depois, em contínua inclinação em relação ao piso e à parede, até ficar totalmente na vertical. Sem apoiar em nada, subiu em direção ao forro.
— O menino! o menino! — A voz fraquinha do anjo da guarda, clamava perto da garotinha.
Toninho correu. Segurou-lhe a mãozinha pálida e fria. Devagar, puxou-a para baixo. O corpo obedeceu, pouco depois repousava exangue no leito.
O orador recitou a oração de encerramento, após o quinto mistério:
— Ó meu Jesus perdoai-nos, livrai-nos do fogo do inferno, levai as almas todas para o céu e socorrei, principalmente, aquelas que mais precisarem.
Findo o terço, observaram que ela parecia mais calma. Animados, resolveram cantar o Credo.
— Creio em Deus Padre, todo-poderoso. / Criador do Céu e da Terra. / E em Jesus Cristo um só seu Filho / Nosso Senhor, o qual foi concebido / Do Espírito Santo, nasceu de Maria Virgem, / Padeceu sob o poder de Pôncio Pilatos, foi crucificado, / Morto e sepultado, desceu aos infernos. / Ao terceiro dia ressurgiu dos mortos. / Subiu ao Céu (bis). / Está sentado à mão direita de Deus Padre, / todo-poderoso; / Donde há de vir julgar os vivos e os mortos. / Creio no Espírito Santo, na Santa Igreja Católica, / Na comunhão dos santos, na remissão dos pecados, / Na ressurreição da carne, na vida eterna. Amém.
A garota deu um berro horroroso e pôs todos a correr, exceto Toninho, que pernoitou no local. Felizmente, o demo não aprontou mais traquinagens naquela noite e puderam dormir bem.
Dia após dia, continuaram a rezar. Lúcifer não dava tréguas. Mal começavam o terço, principiavam as confusões, os desafios, os palavrões.
As reações dela, cada vez mais fracas, entristeciam a todos. Possivelmente Satanás também enfraquecia ou, quem sabe, quisesse demonstrar que não largaria facilmente a presa. A grande batalha estava para iniciar, o padre santo viria.
Padre Hauck
Simeão Hauck era um jesuíta, filho de alemães, ordenado no seminário de Heidelberg. Estava atualmente bem velhinho, com mais de oitenta anos. Desde a infância mostrara claramente tendência religiosa. Internara-se por livre e espontânea vontade, contrariando desejos da família que, por ser tradicionalmente metodista, preferia vê-lo seguir outra vocação. Dedicou-se ao estudo profundo das chamadas forças ocultas, do misticismo e das religiões orientais. Primeiro com espírito de pesquisador sem preconceitos, pois queria conhecer os meandros da mente humana. Posteriormente, convenceu-se de que havia muitos mistérios jamais explicados por qualquer religião. Estava seguro da existência das forças voltadas para o mal. Talvez fossem elas as causadoras das loucuras, das obsessões e das paranóias, quem sabe? Certo é que ele com orações, olhar magnético de poderosíssima energia conseguia expulsar demônios e curar os possessos. Após ter sido sagrado, foi a Roma estudar nos livros proibidos pelo Vaticano, complementou os estudos viajando pela Índia, China, Tibet e Egito, a fim de conhecer outras religiões e filosofias. Participou como auxiliar em sessões de exorcismos. Professor de teologia, mestre em metapsíquica, profundo conhecedor da psiquiatria, ciências afins e do esoterismo. Era um sábio e boníssimo ser humano. Via em cada homem um irmão; a expressão do sopro divino. Todos filhos de Deus. Fora autorizado a exercer o magistério do exorcismo, porque era doutor em demonismo. Sempre exercera o magistério com cabal eficiência.
Enfrentara o senhor das trevas, ou o que fosse, e vencera os embates, às vezes com enorme sacrifício pessoal, tantas eram as energias drenadas no ritual.
Após uma rigorosa preparação mental, espiritual, psicológica e física, estava pronto. Credenciais ele as tinha: permissão explícita do senhor bispo, piedade, prudência e integridade pessoal. Confiava plenamente, não nas próprias forças, mas no poder de Deus. Virtuoso ao extremo, não se levantava o mínimo deslize em toda a sua vida. Conhecia na teoria e na prática como exorcizar. Lera os escritos de autores consagrados sobre o tema.
O padre e o bispo da diocese tiveram uma longa conferência, analisaram todos os ângulos da questão e se convenceram de que se tratava de possessão demoníaca pelas evidências apresentadas: força incompatível com o físico, com a idade ou em condição normal (sansonismo); conhecimento de língua estranha ao grau de cultura; no caso, a possuída só conhecia as primeiras letras e, no entanto, falava e entendia o latim (xenoglossia); apresentação de fenômenos de premonição, conhecimentos de coisas e fatos ocultos (percepção extra-sensorial); conhecimento de coisas, fatos e objetos sagrados (hierognose).
Uma vez autorizado, fez um retiro espiritual, passou a pão e água por alguns dias, aprofundou-se na leitura dos doutores da igreja, principalmente Ambrósio, Agostinho, Jerônimo, Gregório, Basílio, João Crisóstomo e outros. Rememorou casos anteriores e comparou-os com o novo. Pediu insistentemente a Deus forças para combater o espírito do mal. Sabia que ele era matreiro; fingia muito bem, simulava arrependimento, falava no Cristo, nos santos e podia permitir ao possesso receber a Sagrada Comunhão com a maior desfaçatez.
Preparou-se para a viagem. Em um baú dispôs com cuidado: amicto, alva, cíngulo, manipulo, sobrepeliz, estola, casulo, cálice, corporal, pala, sanguinho, véu, patena, hostiário, ostensório, missal. O que fosse necessário para o Santo Sacrifício da Missa. Mais ainda: os santos óleos, hissope, sal, velas, crucifixo e Ritual de Exorcismo. Para um último teste, além da galheta com vinho e água-benta, levou água de bica, bem como um simples pedaço de pão imitando hóstia. O diabo saberia distinguir o falso do verdadeiro.
Simeão Hauck estava cansado. As forças físicas e mentais não respondiam como na juventude. A idade pesava muito. Ele se preparava para a outra vida onde prestaria contas ao Criador. Esperava fazer o último exorcismo, no íntimo sabia que não seria assim, atenderia prestimosamente a outro chamamento. Entretanto, estava forte espiritualmente e isto era muito importante.
Com tudo adequadamente arranjado, solicitou o privilégio de oficiar a missa para a comunidade, pedindo que orassem por ele e pelo êxito da missão.
A viagem longa exigia dois tipos de condução: o trem de ferro, para o trajeto da cidade até um povoado, e cavalo, que o levaria à fazenda Jurema.
Sofrivelmente acomodado no vagão de segunda classe, sentado num banco duro de madeira, procurou ganhar tempo lendo e meditando sobre trechos da Bíblia, orando nos intervalos e clamando pela fortaleza do Senhor. Ele era um santo.
Do lugarejo onde desceu até o destino havia uma jornada a fazer por vales e montes, por estradas quase inviáveis, verdadeiras trilhas de tropas e carros de bois. Mal acostumado a essas andanças e péssimo cavaleiro, sofria dores atrozes nas articulações e nos músculos. Não poucas vezes foi obrigado a parar para se livrar das câimbras e para descansar o monte de pele e ossos, como dizia brincando. Verdade, pela vida ascética que levava, era magérrimo. Naquele tempo, penitências e flagelações eram comuns nos mosteiros, conventos e seminários. Profundamente místico, cumpria com humildade e devoção todos os regulamentos. Periodicamente, usava cilício para martirizar a carne e se fortalecer no Senhor. Para vencer o anjo-mau, entoava cânticos, antífonas e salmos em louvor a Deus. Sem dúvida, o demônio teria um adversário à altura.
No transcorrer da viagem, sofria ora um calor escaldante, que o fazia transpirar abundantemente, ora um frio insuportável, que o gelava até à medula dos ossos, e um mal-estar indefinível. Certamente, o capeta conhecia os objetivos e tentava dificultá-los tanto quanto possível. O exorcista sentia um cansaço exagerado, estava quase sem forças, como se elas fossem chupadas por alguma forma de potência maligna. As alimárias assustavam-se com frequência; alertas, empinavam e recusavam alimentos. Duas quebraram as patas, atrasando, bastante, a chegada. O tinhoso aplicava os artifícios e recursos possíveis para retardar o inimigo poderoso. Indubitavelmente a refrega começara em trânsito.
Embora atropelada e com acidentes no percurso, a viagem prosseguia. Definitivamente não se podia deter aquele homem de bem.
O príncipe das trevas tinha poderes especiais, sim. Detectara a vinda do jesuíta e detestava reconhecer que estava diante de alguém muito forte em espírito. Não conseguindo interromper a viagem, pôs-se a lamentar:
“Ah! Com aquele eu não posso. Ele vai me mandar embora, não quero ir; mas sou mais fraco. Ela é minha, gosto deste corpo. Não tem importância, o padre é poderoso, porém, vou lutar, conheço os segredos dele, ainda tenho recursos.”
Enquanto o confronto não se dava, o senhor do conhecimento, como se intitulava, continuava a mortificar toda a família e visitantes. As extravagâncias alcançaram o mais baixo nível. Os atingidos coravam de vergonha. A saída para estas situações vexatórias era qualificá-lo de mentiroso e dar o fora tão sorrateiramente quanto possível. Poucos entravam no quarto com medo de saírem chamuscados.
O EXORCISTA
Simeão Hauck um dia chegaria... e chegou numa noite que estava escura e tempestuosa. Trovões ribombavam, relâmpagos cruzavam os céus. Um vendaval arrancava árvores e sacudia as janelas da vetusta fazenda. Parecia que, a qualquer hora, a casa seria arrancada dos alicerces de pedras lavradas e sairia pelos ares. Queimaram-se ramos bentos, acenderam-se velas a São Jerônimo e a Santa Bárbara, sem resultado.
O principal é que o religioso estava no campo do inimigo. No quarto, o coxo urrava:
“Não gosto deste homem de sotaina! Filho da puta! vá embora! Aqui é meu lugar! Se você não partir, mato este corpo e mudo pra outro! — Aproveitou para jogar bosta de boi numa tacha de melado, enquanto dizia: — estou aqui há dez anos e nunca fizeram doces para mim.”
Não havia tempo a perder. Simeão mandou que improvisassem um altar o mais próximo do quarto da Ritinha e que arranjassem outro para ele, também perto, onde ficou por aproximadamente uma hora em profunda meditação.
Rezou o ato de contrição, pediu perdão a Deus pelos pecados. Solicitou e obteve ajuda de Toninho, por ser experiente como coroinha.
Abriu a canastra de viagem, retirou as alfaias e baixelas, orientou o menino como dispô-las, corretamente, no altar: as toalhas em número de três, o crucifixo, dois castiçais, com velas acesas, banqueta, estante para o missal e outros apetrechos.
Quando o garoto saiu, começou a envergar as vestes litúrgicas. Desdobrou o amicto, de linho, com cruz bordada no centro e com ele cobriu o pescoço. Passou os cadarços sob os braços e atou-os sobre o peito. Pegou a alva que tinha enfeites nos punhos e na barra. Teve dificuldade com as mangas estreitas. Como a alva descia até o chão, regulou-a com o cíngulo, apertando-o um pouco acima dos quadris. Notou, com certo pesar, que ela estava puída em alguns pontos. Vestiu a casula de seda roxa, símbolo de tristeza e mortificação, em face da ocasião. Enfiou o manípulo, também roxo no braço esquerdo, até à altura do antebraço. Uma tira, comprida, de seda, com extremidades largas; a estola, com cruzes no meio e nas pontas, foi cruzada sobre o peito. Por último, colocou o barrete.
Chamou Toninho, entregou-lhe o Missal. Pegou o cálice, cobriu-o com a patena e com o sanguinho. Pousou-os sobre o corporal, que segurava com a mão esquerda. Sinalizou com a cabeça; juntos entraram solenemente na sala, adrede, preparada para o culto. O menino ia atrás, com o livro no peito, seguro pelos braços cruzados.
O oficiante ajoelhou-se no único degrau do altar, levantou e entoou Aufer a Nobis:
“Tirai de nós, Vo-lo pedimos, Senhor, as nossas iniquidades, para que, puros de coração, possamos entrar no Santo dos Santos.”
Com a presença de todos, iniciou a Santa Missa. Do quarto, a possessa poderia assistir e participar. Tudo correu bem, sem qualquer incidente. A endemoninhada chegou a manifestar desejo de comungar, por pura esperteza do demo. Ela sequer havia confessado. Chorou, convulsivamente, quando eles cantaram o Tantum Ergo.
Tantum Ergo Sacramentam l Veneremur cernui /; Et antiquum documentum l Novo cedat ritui l, Praetest fides suplementum l Sensuum defectui. //
Genitori, Genitoque, / Laus et jubilatio / Salus, honor, virtus quoque l Sit et benedictio l Procedenti ab utroque l Compar sit laudatio. Amen. //
[Tão sublime Sacramento / Adoremos neste altar. / Pois o Antigo Testamento / Deu ao Novo seu lugar, / Venha a fé, por suplemento, / Os sentidos completar!]
[Ao eterno Pai cantemos / E a Jesus, o Salvador; / Ao espírito exaltemos, / Na Trindade eterno amor; / Ao Deus Uno e Trino demos / A alegria do louvor. Amém.]
A seguir, procederam-se à lustração dos cômodos, objetos e pessoas, contra a infestação diabólica, utilizando a incensação com o turíbulo. Rita assistiu, passivamente.
Simeão Hauck entrou no quarto que lhe fora cedido, retirou a alva e vestiu a sobrepeliz de algodão, que tinha amplas mangas. Fechou-a com botões, recolocou a estola, sem cruzamento, apenas com as partes unidas por um alamar, entrelaçado de seda, com borlas.
Pronto para o exorcismo, pediu ajuda de quatro voluntários, além dos pais, que se julgassem em estado de graça e, com eles entrou solene, no quarto da menina.
Ela estava sentada na beira da cama, com os olhos vagos e um ligeiro sorriso escarninho. O padre pediu aos pais, que a segurassem pelos braços, sem machucá-la e examinou-a da cabeça aos pés. Não fosse pelos olhos, poderia ser considerada apenas como uma pessoa doente, nada de sobrenatural. Resolveu conversar um pouco. Perguntou-lhe o nome, a idade, os nomes dos pais e de outras pessoas; a religião; se respeitava os Mandamentos da Lei de Deus e da Igreja; se fora batizada e outras perguntas amenas. Tudo foi respondido com muita graça e inteligência. O cenobita não se enganou; pegou a galheta que continha água pura e ameaçou:
“Este vidro contém água-benta, vou aspergi-la.” Molhou o hissope, brandiu-o na direção dela, fazendo o sinal-da-cruz.
— Isto é água imunda — falou a menina soturnamente.
O padre usou um subterfúgio, disse que ela poderia comungar e deu-lhe uma hóstia consagrada. A possessa gritou de dor e torceu a cabeça para um lado. A língua saburrosa e os lábios roxos expulsaram o corpo de Cristo.
A pedido do exorcista, uma mulher segurou a cabeça de Rita, enquanto ele tentava firmar o crucifixo na testa dela. Tarefa sumamente dificultosa. Ela retorcia-se, escorregava, deitava e até se machucava, jogando-se contra a cruz de Cristo. Ele não tinha mais dúvida, tratava-se definitivamente de um caso de possessão. Rezou Anima Christi:
Alma de Jesus Cristo santificai-me. Corpo de Jesus Cristo salvai-me. Sangue de Jesus Cristo embriagai-me. Água que correstes do flanco de Jesus Cristo, purificai-me. Paixão de Jesus Cristo fortificai-me. Jesus, cheio de bondade atendei-me. Em vossas chagas sagradas, escondei-me. Não permitais que eu seja separado de vós. Contra a malícia do inimigo, defendei-me. Na hora da morte, chamai-me. E fazei que eu venha a Vós, a fim de que, na companhia dos Santos, eu vos louve pelos séculos dos séculos. Amém.
Invocou, em silêncio, a proteção divina para ele, para Rita e para os ajudantes. Fez o sinal-da-cruz, encostou a extremidade da estola sobre o pescoço dela e a mão direita sobre a cabeça. Cantou fervorosamente:
Contemple a cruz do Senhor. Partam inimigos! Jesus, com antiga força, com nobre poder, é o conquistador. Senhor: escutai a minha prece. E deixai a minha súplica chegar até Vós. O Senhor esteja convosco. E com seu espírito.
Oremos: Deus, Pai de Nosso Senhor Jesus Cristo, invoco o Vosso Santo Nome e peco-lhe suplicante: Dignai-vos a me dar força contra este e todos os espíritos imundos que estão atormentando essa sua criatura. Pelo mesmo Senhor Jesus. Amém.
Com os braços abertos, continuou:
Em nome de Jesus Cristo, Deus e Senhor; pela intercessão da Virgem Imaculada, Mãe de Deus, Maria, e São Miguel Arcanjo, os Santos Apóstolos, Pedro e Paulo, e todos os Santos; e confiando na sagrada autoridade do nosso ofício, estamos prestes a realizar a expulsão da infestação diabólica.
A possessa deu um grito pavoroso. Caiu de costas sobre a cama e ficou inteiriçada. De todas as extremidades e orifícios brotaram fios de sangue. Ele não se impressionou ou acovardou, estava acostumado. Invocou o espírito mau:
Espírito imundo! Quem quer que você seja. Pelos mistérios da encarnação, os sofrimentos e a morte, a Ressurreição e a Ascensão de Nosso Senhor Jesus Cristo; pelo envio do Espírito Santo; e pela vinda de Nosso Senhor no Juízo Final, ordeno-lhe: diga-me, com algum sinal, o seu nome, o dia e a hora da sua danação e da partida. Obedeça-me em tudo, embora eu seja um servo indigno de Deus. Não cause dano algum a esta criatura, aos meus ajudantes ou a mim ou, ainda, a qualquer dos seus bens.
Rita começou a levitar.
— O menino, o menino — implorou o anjo.
Correram a chamar Toninho, o único que tinha poderes para trazê-la de volta ao leito. O que ele fez com relativa facilidade e pasmo do vigário.
Após esta interrupção, o servo de Deus continuou firme, impiedoso, a luta contra o pé-de-cabra, realizando integralmente o processo de exorcismo, fazendo leituras do Evangelho, discursos apropriados do Ritual e recitação de salmos, sem se importar com o estado aparente da possessa que mudava de minuto a minuto. O abrenúncio ocorreria quanto mais forte fosse o padre e quanto mais fraco, Lúcifer; ou seja, quando se desse a ruptura do equilíbrio das forças do bem e do mal.
Neste momento o exorcista realizava uma invocação:
— Das ciladas do espírito maligno.
— Livrai-nos, ó Senhor... — respondiam.
Ritinha estava sentada, curvou-se e, com as mãos, segurou as pontas dos pés. Girou no ar como se fosse uma roda e caiu estatelada no chão. O corpo violáceo, o ventre inchado e o rosto cheio de bolhas. Com um pulo tentou agarrar o padre, que deu um passo atrás e avançou o crucifixo.
— Quem és tu que tens a audácia de combater comigo?! Perguntou o asqueroso ser.
O exorcista vacilou, uma lassidão o invadiu, queria desistir, mas sabia que era a ação do diabo na mente. Desesperado, implorou a ajuda de Deus. Como se um ser invisível o acudisse, respondeu:
— Sou um sacerdote de Cristo. Ordeno-te, sejas tu quem for, que me obedeças. Eu faço as perguntas.
Agora estava iniciado o duelo de vontades. Ritinha falava, mas não era ela. O demônio é que tentava se revoltar, iludir e mentir. Insolente, grosseiro, desdenhoso e trocista quando lhe convinha. Submisso, religioso, também humilde se lhe parecesse melhor.
A luta prosseguiu por quinze dias, ora o jesuíta se sentia vitorioso, ora sofria com uma aparente derrota, ficava arrasado. Todos estavam em grande perigo: a doente pela perda de energia, sugada pela entidade; o soldado da Companhia de Jesus, pela tremenda demanda mental e Lúcifer, pelo convencimento da derrota e disposto a ir até o fim.
Felizmente, o santo homem venceu. Satã se rendeu e se dispôs a dialogar.
— Quem é? — interrogou o padre.
Ela não deu qualquer sinal de ter ouvido. Tinha a cabeça fortemente dobrada para trás e mostrava as veias intumescidas do pescoço.
— Responde — insistiu, enquanto a ameaçava com água-benta.
Uma voz grossa, que parecia vir do fundo do estômago da possessa, articulou:
— Não respondo, tu és meu escravo. Xô! xô! urubu!
— Em nome de Deus, que tu muito bem conhece de onde vens? Qual o teu nome?
Rita caiu de lado, os olhos dançavam, loucamente, nas órbitas, a roupa estava encharcada de suor. Simeão Hauck ordenou enfaticamente:
— Repita comigo: Jesus! Jesus! Jesus!
— Não... ão...ão... Esse nome não. — A possessa se curvava a ponto de tocar com a cabeça nas nádegas.
— Segurem-na! Segurem-na! — gritava o exorcista para os ajudantes. — Façam-na encarar a cruz.
Com esforço, repuseram a moça na beira da cama.
— Vamos! Obedece! Qual a tua origem?
— Do Tártaro, Inferno ou Hades, como quiseres.
— Teu nome! Quero que digas! Fala, fala, fala!
— Luzbel, o Serafim mais formoso, o portador da luz. Agora sou Lúcifer, o maioral.
— Estás só ou tens companheiros?
— Ora, ora, ora, para oprimir esta criança não preciso de ajuda. Estou apenas me divertindo. Meus ajudantes estão por aí, cuidando de outras obrigações mais importantes.
— Por que tomaste esta inocente?
— O pai dela me chamava a toda hora. Vim atendê-lo. Ajustar nossas contas.
— Em nome de Jesus, Ritinha, resista ao demônio!
O corpo da mocinha ficou frio e rígido. Os auxiliares indicaram o fenômeno ao prelado que, não deu importância e continuou implacável:
— Parte! Ordeno-te em nome de Deus!
— Partir? — O diabo questionou, — Para onde? Estou no que é meu, no que me pertence por concessão. A Terra é minha e os homens são meus súditos, a humanidade é má como sou mau.
— Porco sujo! Deixa esta cristã. — - O exorcista estava incisivo.
— Alto lá! Tenho permissão Dele para oprimi-los e possuí-los. — Satã era espertíssimo, conhecia todas as sinuosidades da teoria patrística.
O padre sentiu o golpe, fora duramente atingido nas convicções mais íntimas. Apelou intimamente para seus conhecimentos de lógica, filosofia e teologia dogmática. Sentiu-se enredado num cipoal de contradições. A vista se lhe escureceu. Sabia que era uma síncope provocada pelo poder da entidade. Reagiu, Pediu a Deus desesperadamente com a linguagem da alma:
“Cordeiro de Deus, que tirais os pecados do mundo, Tende piedade, dai-me forças!”
Recuperou instantaneamente energias mentais.
“O Senhor supremo permite que tu ajas somente para testar nossa fortaleza e nossa liberdade. Somos criaturas de Deus, a sua imagem e semelhança...”
“Todos me pertencem, desde o primeiro homem. Lembra-te do pecado original.” contestou o demo.
“O sangue de Jesus Cristo derramado na cruz redimiu toda a humanidade. Vai-te, Satanás! sai! sai! afasta-te desta criança!”
Ritinha apresentava sintomas de indizível dor e sofrimento, contudo o momento era decisivo. Ela deu uma olhada oblíqua para o padre que estremeceu. Jamais tinha visto tanta raiva, ódio e maldade estampado num único olhar.
“É minha, estou cobrando uma promessa, já lhe disse. O pai dela me deu ainda na barriga da mãe.”
“Sua alma pertence ao Divino Mestre, Jesus Cristo. Queima! Queima! Queima!” Pegou o aspersório e jogou-lhe água lustral.
“Amigo” chasqueou o demo “de fogo entendo. No meu reino todos ardem eternamente. Tens uma oração que diz; Livrai-nos do fogo do inferno"...
“Maldito! Eu te destruirei!” Enquanto vituperava, envolvia Ritinha com a estola.
Exorcizo a ti, espírito imundíssimo, a toda incursão do inimigo, todo aspecto, toda legião, em nome do nosso Senhor Jesus Cristo, que sejas erradicado e enxotado desta criatura de Deus. Ordena-te aquele que governa os mares, os ventos e as tempestades. Ouve, portanto, e teme ó satanás, ofensor da fé, inimigo da raça humana, alcoviteiro da morte, destruidor da vida.
Um urro medonho, horripilante ecoou no quarto. O padre: vergastado por tremenda energia, recuou alguns passos. Teria caído se não desse de encontro à parede. O barrete foi ao chão, ficando emborcado como uma cuia. A menina aproveitou para mandar uma certeira cusparada sobre o pompom. Ele abaixou, apanhou o barrete, limpou a gosma e resolveu dar uma pausa para se recuperar; dispensou os auxiliares e se retirou para o quarto. Caiu numa espécie de atonia e. por tempo impreciso, cerrou as pálpebras. Uma gritaria o tirou daquela fraqueza:
“Acode! Ela está se matando!”
Correram para o quarto e encontraram-na com o cíngulo fortemente enrolado no pescoço e os olhos quase saltando das órbitas. Com imenso esforço libertaram-na do nó. Simeão tentou ungi-la com os santos óleos traçando o sinal-da-cruz na sua fronte. Recuou com um grifo lancinante: havia sido mordido na mão
Atacou com a Litania dos Santos:
Kyrie, eleison. Christe, eleison. Christe audinos...
[Senhor, tende piedade de nós. Jesus Cristo tende piedade de nós, Jesus Cristo escutai-nos]...
E com total autoridade:
“Estou investido do poder de Deus, de seu filho amantíssimo, Jesus, da virgem Maria e da Santa Madre Igreja Católica. Tu estás derrotado, espírito das trevas.”
O diabo tirou o último trunfo da manga:
Batina preta, velhaco, sei que na meninice furtaste um canivete, isto me dá direito sobre ti.
“Sim, quando criança, tive esta fraqueza, arrependi-me e devolvi. Deus me perdoou.”
Sabiamente, o exorcista mudou a abordagem. Orientou os acólitos para que formassem um círculo em torno de Rita, que, neste momento, estava sentada no chão. Ele também ficou no interior. Estenderam as mãos em direção aos dois. Hauck ajoelhou-se e elevou os braços, com as palmas das mãos viradas para baixo, quase roçando na cabeça da garota e com os olhos para o Alto, orou piedosamente:
Senhor Deus, todo-poderoso! Nada acontece sem o vosso querer. Vós criastes o universo, o macrocosmo, o homem, o microcosmo, tende piedade dessa humilde serva, cujo sofrimento está além de suas forças, Vós permitistes que ela fosse possuída por este espírito primitivo, se for de vosso desejo, acabai com esta provação e autorizai ou determinai que o mal abandone este corpo para que ele seja habitado pela vossa luz. Nós vos pedimos em nome de Jesus, Vosso filho, que morreu na cruz para nos salvar. Concedei, ó Deus, que este corpo seja vossa morada para que possa honrar e glorificar. Amém.
Houve uma mudança extraordinária no estado e comportamento da possuída, que começou a chorar convulsivamente. Novamente a voz rouca se fez ouvir;
“Todos se salvam, menos eu que carrego eterna maldição!”
“Quem sabe?...” — o padre estava pensativo. — “Os desígnios de Deus são misteriosos. Orígenes, Gregório de Nissa, Rufino e outros padres da Igreja ensinavam a apocatástase: no fim dos tempos todos serão admitidos no paraíso, inclusive Satã. Se ele age por permissão de Deus, talvez mereça a redenção...”
Lúcifer entendeu, vacilou, mas se recobrou e reassumiu a arrogância habitual.
— Está divagando, homem! Não me arrependo do que fiz. Prefiro ser o maior no meu reino, onde comando legiões, do que o segundo no céu.
— O orgulho te perdeu, a humildade te salvará um dia.
— Não! O homem criado à imagem e semelhança Dele, por livre-arbítrio tem vícios, precisam de mim, queimarão comigo.
O exorcista abaixou a cabeça como se concordasse e lembrou-se de Agostinho: “A espécie humana é uma árvore frutífera do diabo, sua propriedade donde ele pode recolher frutos”.
Lúcifer não queria mais batalhar. Satisfizera-se com a seriedade, competência, ciência e carisma do formidável oponente. Não se considerava expulso. Resolvera adotar uma retirada tática.
— Estou cansado dessa discussão. Perdi muito tempo nessa casa, vou embora. Graças ao teu discurso piedoso sairei daqui. Cuida para que não me chamem outra vez, senão voltarei. Quero me despedir do pessoal.
Foram chegando um a um e apertando a mão da Ritinha (dele). Quando chegou a vez de Toninho, o último, a coisa deu uma risada e falou:
“Tu ainda serás meu!”
Toninho caiu desacordado. Hauck sentiu que o momento era decisivo; abraçou Rita antes que ela também desfalecesse e recitou a fórmula: Ego absolvote ab omnibus maleficiis incantationibus, ligaturis, signaturis et facturis tibi arte diabolica factis. In nomine Patris et Fuli et Spiritus Sancti. Amén.
[Eu te liberto de todos os malefícios, encantamentos, ligaduras, feitiçarias e sortilégios feitos contra li por arte diabólica. Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Amém.]
Depositou-a, docemente, na cama e orou pela vitória:
Deus onipotente e eterno, que curastes as feridas de Vossa filha Rita na fonte dulcíssima de Vossa misericórdia e a arrancastes das fauces do dragão, eu Vos rendo graças de todo o coração e imploro Vossa clemência a fim de que nenhum terror nem sevícia da serpente possam, a partir de agora, inquietá-la. Digne-Vós abençoá-la, santificá-la e confirmá-la na Vossa graça, para poder servir-Vos com alegria do coração, para cumprir Vossa vontade e para reuni-la na taça da vida eterna. Ó Vós que viveis e reinais na unidade perfeita, nos séculos dos séculos. Amém.
Pela última vez, pegou o acéter com água-benta e aspergiu em todas as direções, especialmente sobre a menina. Retirou o encólpio que trazia sobre o peito e passou-o para o pescoço de Rita. Agora, ela estava definitivamente, livre das tentações do demônio.
Quando os jovens voltaram a si, parecia que tudo estava bem. A fazenda livre da devastação e as pessoas aliviadas de um grande peso. A paz voltara, afinal..., contudo, ele, o menino, tinha um olhar estranho, muito estranho.
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