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Fome
FOME
Conto de Asséde Paiva
"A fome é a forma mais urgente de injustiça." — Jean Ziegler
Volta Redonda, junho de 2025
Jairo acordou muito cedo. Na verdade, mal dormira. Pesadelo — as palavras do filho ainda ecoavam como faca:— Pai, ‘tô com fome...
Lá fora, as estrelas cintilavam no céu duro de frio. Atravessou a vereda, escorregou perto da pirambeira, mas agarrou-se a um ramo de erva-cidreira e escapou da queda.
Pobre Jairo: homem sem eira nem beira, seguia ao arraial em busca de serviço. Talvez alguém precisasse de um quintal limpo. Talvez... nada. Quem sabe, com sorte, o fazendeiro mandachuva do pedaço, seu José T***, tivesse algum bico, uma capina no milharal.
Enquanto andava, tirou da bainha a quicé e, do bolso da calça esgarçada, um toco de fumo de rolo. Andava devagar, com cuidado, picando o fumo com dedos duros. Sem dinheiro, sem café, com a mulher e o filho ainda dormindo no casebre. Saíra sem fazer barulho. Não sabia como voltaria — ou se voltaria — com algo para comer.
Eles estavam magros de fome, dormindo e sonhando com comida quente. Jairo quis enganar o estômago: pegou uma palha de milho da camisa e enrolou um cigarro. A fumaça talvez enchesse o vazio.
Depois de andar dois ou três quilômetros, passou ao largo da fazenda Boa Vista. Sabia que lá fabricavam queijos, principalmente o tipo prato. Só de lembrar, sua boca se encheu de saliva. A fome apertou. É triste a barriga vazia.
Foi a uma moita de bambu. Com a quicé, cortou uma vara firme. “Pra espantar cachorro”, pensou.
Desceu a cava que o levaria à queijaria. Nenhum latido. Estava com sorte de bom ladrão ou ladrão ocasional. Hesitou: “E se o queijeiro estivesse acordado”?
A fome gritou mais alto. Jogaria com a sorte — ou contra o azar. Seu José T*** era valente, já matara um ou dois. Mas a fome...
Testou uma janela: fechada. Outra, também fechada. A terceira abriu, rangendo os gonzos.
Escorregou silenciosamente, como sombra.
No lusco-fusco, um brilho. Um estampido.
A bala atravessou-lhe o peito. O proprietário, insone, dera chumbo à fome de Jairo.
Sua mulher e o filho esperavam. Até quando? Com fome...
O tiro calou a madrugada. A fazenda silenciou, como se a noite tivesse engolido o grito que não saiu. Jairo tombou sobre o chão frio da queijeira, entre tábuas mofadas e o cheiro ácido dos queijos. O cigarro, mal enrolado, ainda estava atrás da orelha.
O sangue escorria grosso, escuro, como a esperança morta dos pobres.
Seu José T*** ficou parado, rifle ainda em punho. O dedo trêmulo. Aproximou-se, viu o rosto pálido e murmurou algo como:
— Desgraçado...
Mas já não havia raiva. Apenas medo do processo, e o cansaço de quem sabe que o mundo está podre desde a raiz.
Lá, no casebre da madeira, Ana, mulher de Jairo, acordou assustada e sobressaltada. Não soube o porquê. Apertou o filho contra o peito. Sentiu a ausência do marido como se o vento lhe arrancasse algo das entranhas.
Levantou-se, esquentou água. Não havia o que pôr na panela, mas a chama dava ilusão de presença e espantava fantasmas.
— Ele volta, sim — disse ao menino sonolento. Mas a voz saiu mais como reza do que certeza.
O corpo de Jairo foi deixado na beira do caminho, embrulhado num saco de estopa, como trapo velho. Seu José T*** não quis polícia, nem conversa. Chamou o capataz e os peões:
— “Some” com o corpo. Era ladrão. Acabou.
Mas não acabara.
A notícia correu. Na vila, murmuravam. Alguns diziam bem feito: não se entra em casa alheia pela madrugada e pela janela. Outros, mais silenciosos, sabiam da fome. Sabiam da panela vazia. Um ou outro chorou calado.
Jairo foi enterrado envolto num lençol. Não havia como comprar um caixão, a miséria era dele e do povoado.
Dias depois, Ana subiu ao arraial. Pés inchados, o filho pela mão. Bateu à porta da igreja. Pediu ao padre para oficiar a missa de sétimo dia e, não podia pagar a amenta. Não tinha dinheiro. nem comida. Só vergonha — e orgulho ferido.
— Ele não era ladrão, padre Arruda... Era só um pai faminto.
O padre suspirou fundo. Olhou para o céu, buscando resposta. Mas ali só havia o espelho de nossas impiedades.
Domingo, depois da missa, visitaram a cova rasa do indigitado, no alto do morro. O povo foi, silencioso, como se soubesse que o morto era espelho de todos.
E, na mesma noite, um menino de onze anos, magro feito vara de pescar, surrupiou um varal de roscas e dois pães da venda de seu Agenor.
Fugiu correndo pela estrada de terra, com o estômago doendo de medo... e de fome.
FINIS
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Excelente texto
ResponderExcluirParabéns! Belo conto!
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