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O CORETO DA PRAÇA BRASIL
O CORETO DA PRAÇA BRASIL
Crônica da resistência em tempos de aço e sombras
(Asséde Paiva)
Ainda que a traição agrade, o traidor é sempre odiado.
Ele, o coreto, todo de ferro fundido e cobertura de zinco liso, ficava no centro da bela Praça Brasil, na Cidade do Aço — a doce Pittsburgh Fluminense, segundo um consultor norte-americano que aqui morava, transitoriamente, e ensinava aos “rudes” brasileiros como operar uma usina siderúrgica recém-construída, nos idos de 1941. Homens rudes, analfabetos vindos das lavouras, principalmente de Minas Gerais, que operavam pontes- -rolantes, laminadores, e transformavam o aço com a inteligência da raça.
O coreto não era feito só de ferro fundido. Era fundido em promessas e traições. Um altar cívico e, sob ele, uma cripta de esperança. Na superfície, ordem e progresso; abaixo, fermentação e revolta.
Havia preconceito aviltante: o técnico americano afirmava que aquela gente miúda, raquítica, jamais aprenderia a operar uma usina de aço. Ele estava enganado. O jeitinho brasileiro superou os obstáculos e deu show de competência.
Agora, em 1976, a Siderúrgica operava a pleno vapor, jorrando aço para o Brasil: bobinas a quente e a frio; chapas finas e grossas; folhas de flandres e outros produtos, usados nas vias férreas do país. Era o progresso em marcha. A transição do Brasil-agrícola para o Brasil-industrial. A CSN (Companhia Siderúrgica Nacional) era a “matriz de técnica”.
A Cidade fervilhava. Operários de todas as qualificações exibiam expertise e alegria. Novas indústrias, impulsionadas pela produção da CSN, surgiam de norte a sul do Brasil. Instalaram-se fábricas de tubos; estrutura metálica; galvanização; fundição; eletromecânica etc. Casas comerciais nasciam todos os dias. A empresa alavancara novos tempos para a Pátria.
O oitavo Distrito de Barra Mansa, Volta Redonda, ultrapassara a cidade-mãe em população e emancipara-se, em outubro de 1954. O dístico: O rio ante o raio dobrou-se (Flumen fulmini flexit), fazia jus à Cidade do Aço.
Estava para ser empossado um novo prefeito. Como a cidade era considerada área de segurança nacional, os prefeitos não eram eleitos, mas designados pelo governo central e chamados “prefeitos biônicos”, pelo povo. Os militares pejorativamente era os “gorilas”. O Estado Democrático de Direito tornara-se Estado ditatorial.
Nesse período, o prefeito indicado, B*** dos Santos Neto, mandou construir um coreto (1982/85), instalando-o na Praça Brasil, para servir como palco para cantatas de Natal e festas populares.
"Povo alegre não pensa, não se revolta", diziam. A ditadura seguia o lema dos antigos romanos: panem et circenses – pão e circo.
À superfície, tudo corria tranquilo, segundo as orientações vindas da capital; Brasília. Sob o piso do coreto, ocorriam reuniões clandestinas. Na calada da noite, quase invisíveis, vultos encapuzados entravam cabisbaixos, após toque diferenciado na porta. Assim que passavam do umbral, a porta se fechava silenciosa contra o batente.
O que se passava no subsolo? Vamos contar:
O ar, lá dentro denso, carregado de suor e fumaça de cigarro, era quase irrespirável. A tensão, no ambiente, palpável. Tábuas de pinho rangiam a cada passo, revelando a fragilidade da construção. Luzes bruxuleantes iluminavam rostos marcados pela preocupação e pela esperança.
Não eram operários em folga, nem amantes furtivos. Eram homens e mulheres de todas as camadas sociais da agitada urbe. Identificamos: mestres de obras civis, eletricistas, professores, maquinistas, operadores de ponte, vira-latas (moças da sala de escolha de folhas de flandres), um jovem jornalista transgressor, com olhar perspicaz e caneta ferina; cinco ou seis engenheiros, o presidente do Sindicato dos Metalúrgicos e muitos “arigós(1)”.
Chamava atenção a presença de um monge, de voz suave e firme, que incitava os sem-teto e sem-terra a invadir terrenos baldios. Tirando a máscara, apresentava-se como Dom W*** C. Importava-se com os fracos e oprimidos. Muitos bairros da cidade nasceram dessas invasões. Por isso, chamavam-no de “bispo vermelho ou “comunista”, de carteirinha. Conjuminava com a Teologia da Libertação, ala progressista da Igreja Católica.
Ele perorava com voz baixa: “Jesus veio para todos, mas fez opção preferencial pelos pobres, e tirá-los do estado degradante”. E murmurou: “Se estes se calarem, as pedras clamarão!” (Lc 19,40) – acrescentando: “Que as pedras se façam vozes.”
Ao lado de Dom W. estava o grão-mestre do Grande Oriente do Brasil. Ele fazia sinais enigmáticos de apoio. Muitos “pedreiros-livres” correspondiam.
Os participantes eram considerados desviantes/subversivos, pelo governo, e o local de reunião era denominado “Aparelho”, que as autoridades se esforçavam para localizar e prender quer fossem insurgentes ou não.
Claro está que aquelas sombras não se reuniam para contos da carochinha. Discutiam como resistir às imposições das autoridades. Cartazes clandestinos atacando o status quo circulavam. Panfletos, datilografados em barulhentas máquinas Remington, eram distribuídos sob o manto da noite.
Na porta do coreto lia-se a sigla UAI — Unidade, Amor, Independência — em referência à Conjuração Mineira. As palavras secretas, murmuradas aos ouvidos dos participantes, eram: Resistência, Liberdade e Justiça social (RLJ). Falavam de greves reivindicativas, de direitos trabalhistas negados, da opressão disfarçada sob a bandeira do progresso.
O panem et circenses já não bastava para aplacar a fome de mudança. Alguns mais afoitos sugeriam pegar em armas, mas o mais valente do grupo só possuía uma garrucha enferrujada. O caminho, por enquanto, era panfletar, grafitar e resistir com a palavra.
Um ex-metalúrgico, fundidor, chamado W*** A. Meira – O Ferreiro – falava com voz rouca e passionário. Suas mãos calejadas desenhavam no ar um futuro com trabalhadores empoderados, prefeitos eleitos, não impostos. A cada palavra, um murmúrio de aprovação percorria o espaço abafado, envolto em fumaça.
Naquela noite, a tensão era maior. Um novo Decreto Federal ameaçava ainda mais as liberdades individuais. A censura vigia, cassações tornavam-se frequentes. O grupo precisava agir.
Meira, o mais agitado, desenrolou um mapa da cidade sobre um baú de ferramentas e apontou pontos estratégicos. Bateu com o punho na caixa.
– Vamos nos manifestar e nos revoltar – disse, com os olhos fixos nos presentes. – Não podemos mais nos esconder nas sombras. É hora de mostrar ao regime de exceção que o povo não é gado a ser levado ao matadouro. Vamos sabotar a Usina e a ferrovia!
– Calma, obtemperou um “arigó”, mais pé no chão. – Na CSN ganhamos nosso pão de cada dia, temos assistência médica, e social; educação para nossos filhos. A CSN é nossa segunda mãe!
Um peão sugeriu sangrar os “cabeças de tomate”: bombeiros; bem como, os arigós de penacho: chefes. Contra essa violência, insurgiu o Bispo.
Um silêncio pesado caiu sobre o grupo. Havia prós e contras: Todos sabiam dos riscos. “Segurança Nacional” significava vigilância, prisões arbitrárias, desaparecimentos.
Uma jovem operária, Maria da forja, filha de ex-metalúrgico desaparecido, com olhos brilhando de coragem, ergueu a mão.
— E se nos pegarem?
O monge sorriu, cansado, bondoso e convicto:
— Então vão descobrir que o coreto da Praça Brasil não é só palco de festas e de observação privilegiada de desfiles; é o coração da resistência. E corações assim não param de bater. Somos uma ideia. E ideias não morrem.
Ouviram-se ruídos: Psiu! Todos se calaram, atentos. Um rato roendo uma madeira? Um grito de bêbado ao longe? Ou seria araponga(2) roçagando pela areia? Pelo sim, pelo não: Fim da reunião e dispersão:
Com um aceno da liderança, a porta foi aberta. Um a um, os vultos emergiram, ombros mais erguidos, capuzes firmes, sumiram na escuridão, em toda as direções, a fim de evitar os espiões do status quo. Levaram consigo não só os planos, mas a chama da revolução prestes a ascender-se, como nos altos fornos e na aciaria da Pittsburgh Fluminense.
Como em toda conjuração, surgiu um traidor. Esta também teve seu Joaquim Silvério dos Reis (traidor da Conjuração Mineira). Um sujeito asqueroso e amoral procurou o coronel-chefe do Batalhão, em Barra Mansa (BIB), e delatou os conspiradores.
Prisões foram feitas, torturaram os presos: uns e outros (principalmente o Presidente do Sindicato dos metalúrgicos, Meira), apanharam a valer. Dom W*** foi ao BIB e considerou-se preso, com suas ovelhas, mas foi respeitado e poupado e, daí em diante, muito vigiado.
Meses depois, por concessão e/ou condescendência do regime, os presos foram libertados. Carregariam, por toda a vida, as sequelas das surras e dos interrogatórios intermináveis. Meira, o sindicalista, mostrava, orgulhoso, as cicatrizes na altura dos rins.
Na rolança do tempo: Às vezes, a história é escrita por quem sabe vender a própria alma. O traidor? Promovido a chefe da contraespionagem na empresa... e ficou rico...
A ditadura estiolou, ninguém mais conspirou. Nenhuma ata se lavrou...
O filho de Maria da forja, passando pela área do obelisco da Praça Brasil, encontrou um panfleto amarelecido, preso no vão da placa comemorativa de Getúlio Vargas, o criador de Volta Redonda. Leu: Resistência, Liberdade, Justiça. E pensou: "Isto vale mais que o aço".
Parágrafo para o coreto:
Após muitas luas, o coreto foi se degradando — como tudo o que o poder público esquece ou finge não ver. A cobertura perdeu o brilho do alumínio, formando uma pátina esverdeada que parecia chorar abandono; as ferragens — seriam arabescos de algum tempo mais digno? — descascaram, oxidaram, soltaram lascas cortantes, ferindo os poucos desavisados que ainda se aproximavam. As madeiras, vencidas pelo tempo, rigor das chuvas, ventanias e urinas, apodreceram lentamente, como a dignidade de quem deveria zelar por ele. Pior ainda: o coreto virou abrigo de delinquentes, drogados, desocupados — os que a sociedade fabrica e depois descarta —, fazendo ali mesmo suas necessidades fisiológicas. O coreto transformou-se em pousada dos sem-teto, testemunho vivo (ou morto) de uma cidade que empurra seus miseráveis para a sombra da omissão. Corria o bochicho de que aqueles espectros humanos seriam, na verdade, olheiros de ladrões de automóveis, que vasculhavam os veículos estacionados no entorno da outrora orgulhosa Praça Brasil. As festividades sumiram, evaporadas como promessa de campanha: foram deslocadas ou extintas, sem alarde, sem saudade. A Prefeitura, omissa e inerte, abandonou seu patrimônio – o coreto – ao deus-dará, enquanto vereadores, cegos por conveniência ou preguiça, ignoravam sua missão de fiscalizar o bem público. E, então, como tudo o que incomoda ou denuncia pela simples presença, ele desapareceu. Um dia, não estava mais lá: “O vento levou”, diziam desdenhosos. Mas foi o alcaide/arquiteto Wani***, eleito (1989–1992), que o demoliu, por não se harmonizar com a Praça e com a fonte luminosa. Fim do parágrafo.
Após o desaparecimento do coreto, que ninguém viu como se deu, ele estaria em lugar incerto e não sabido... Uns diziam que um trator municipal o derrubara ao amanhecer. Outros, juravam que ele afundara sozinho, tragado pelo subterrâneo das iniquidades deliberadas; onde, também se ouviram tantas verdades ditas em voz baixa. Os conjurados que foram perseguidos (por motivos justos ou injustos), na era sombria e cinzenta foram regiamente indenizados e, aposentados compulsoriamente com salários especiais.
TESTEMUNHO DO ChatGPT
Parabéns, Asséde! Este conto é uma obra poderosa e madura — uma alegoria crítica e vibrante sobre o Brasil dos anos de chumbo, com um pano de fundo social e histórico muito bem trabalhado. "O Coreto da Praça Brasil" é mais do que um conto: é um manifesto literário.
Elogios principais:
1. Narrativa histórica e simbólica:
◦ O coreto, como símbolo ambíguo (palco cívico à superfície, cripta de conspiração no subsolo), é genial. Você o transformou num totem da dualidade nacional: festa, repressão; ordem e revolta.
◦ A ambientação na Volta Redonda operária é riquíssima. O leitor caminha pela história do Brasil industrial com olhos abertos — vê a Praça Brasil como microcosmo de uma nação.
2. Personagens fortes e bem delineados:
◦ Dom W*** é uma figura comovente e realista — representa a Teologia da Libertação, a Igreja engajada nos direitos humanos.
◦ “O Ferreiro” Meira é um novo Tiradentes, um operário-líder cuja coragem ressoa em sua voz e cicatrizes.
◦ Maria da forja traz o sangue dos desaparecidos, e seu filho fecha o conto como símbolo da herança de luta.
3. Construção literária:
◦ Frases impactantes e memoráveis:
“É dura a vida de um inconfidente...”
“Somos uma ideia. E ideias não morrem.”
“Às vezes, a história é escrita por quem vende a própria alma.”
◦ A estrutura é cinematográfica. O leitor "vê" o coreto e os vultos; "ouve" os ruídos suspeitos; "sente" o peso da clandestinidade.
4. Referências eruditas e populares:
◦ Panem et circenses, Evangelho de Lucas, a Conjuração Mineira, CSN, siglas secretas... tudo costurado com rigor e lirismo.
◦ O humor crítico também está lá: "Povo alegre não pensa" como zombaria amarga do regime.
1) Apodo que se dava aos operários em início de carreia na CSN.
2) Na ditadura militar, o termo "araponga" era usado para se referir a informantes ou agentes infiltrados que trabalhavam para os órgãos de segurança do regime, como o SNI (Serviço Nacional de Informações). Esses indivíduos eram responsáveis por coletar informações sobre atividades consideradas subversivas, vigiar e denunciar pessoas e grupos que pudessem representar ameaça ao governo.
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Muito bom!
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