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A Medalha
A Medalha
Uma medalha nunca terá mais valor do que a história que antecedeu ela
(PatríciaCassol Eickhoff)
Estávamos em 1953/54. A cidade de São Paulo era em festas: São Paulo quatrocentão: São Paulo da garoa / São Paulo terra boa.
Perambulava pelas ruas. Estava procurando meu lugar ao sol. Desempregado há meses, na cidade grande. Era março completaria meus dezoito anos... ah, juventude! Pois bem, leitor e leitora, esse que vos escreve, transitava no Vale do Anhangabaú. A fome comprimia meu estômago. Passei perto de um vendedor de churrasco grego e fiquei olhando, olhando, com a boca cheia d’água, mas havia que poupar o minguado dinheirinho. Ao lado do churrasqueiro, estava uma pastelaria, decidi comer um pastel recheado com um ovo, o pastel era mais barato do que o churrasco. Ao receber o troco, uma moeda escorregou-me entre os dedos e caiu num monte jornais velhos. Abaixei para apanhá-la, para mim um tostão1 era muito dinheiro. Quando removi os jornais vi uma medalha brilhante, apanhei-a junto com meu troco, escondendo-a do pasteleiro. Pensei: “Tô feito”, se esta medalha for de ouro. E continuei minha deambulação, passando debaixo do Viaduto do Chá, em direção a um comprador de ouro. Logo li a placa: “Compro ouro e prata, pago bem”. Entrei no prédio, subi dois andares e estava diante de um comprador com feições de judeu. Mostrei-lhe minha joia e ele a devolveu de imediato: “Está querendo me passar para trás? Isto não vale nem um tostão furado, é latão2. Decepcionado, fui em direção â rua Barão de Itapetininga e por outras e outras até à Praça João Mendes, nela pegaria o bonde para Santo Amaro, onde pousava em reles Pensão, que sequer tinha nome. O cafofo era misto: dormitórios para cavalheiros e casa de tolerância. Casais entravam e saiam a todo momento, noite inteira. Uma sonolenta meretriz me convidou; declinei, pois não podia pagar o “serviço”. Escondia-me num quartinho minúsculo e dividia o teto com baratas e ratos. Que fazer? Havia que poupar.... Examinei atentamente a medalha, que apresentava estilhaços nas bordas. Era comemorativa ao Quarto Centenário da Cidade de São Paulo (1554-1954). “Bem que poderia ser de ouro”, pensei, “me renderia uns trocados”. Devo ter suspirado e deitei-me na enxerga. Dormi e sonhei que era muito rico, porque a medalha era mágica e me dera sorte grande: Acertara na Loteria Federal, com o número 12835 (primeiro prêmio: cobra na cabeça). Foi sonho mesmo, nem bilhete tinha; sequer um Gasparzinho (fração). No dia seguinte, sempre duro (sem dinheiro e, sem futuro), fui à procura de emprego e mais uma vez me decepcionei. Afinal, eu era, meramente, um datilógrafo de meia-tigela. À tarde, estava no mesmo Anhangabaú, e resolvi subir a escadaria do Viaduto do Chá e pedir emprego nos bares e lojas do prédio das Indústrias Matarazzo. Enquanto subia, ouvi um barulho, rufar de tambores, e repiniques. Não me dei conta de que era prelúdio do Carnaval e, uma escola de samba, em pré-estreia, descia as escadas, enquanto eu as subia, a passos largos. De repente, tomei safanão de um segurança da escola e fui violentamente de encontro o muro. Acho que fiquei grogue, pois vi as baianas passarem, saracoteando por mim e, algumas até rindo com escárnio, talvez pensassem que fosse um bêbado dormindo no degrau da escada. Logo que a escola desceu no Vale, levantei-me ainda bambo, senti que a medalha desparecera, pois não mais estava em minhas mãos, nem bolsos. Revirei algum lixo por perto, mas nada encontrei; na verdade, achei dez cruzeiros (Cr$10,00). Terminei a escadaria e estava na Praça do Patriarca3. Como sempre, falhei miseravelmente em pedir emprego. Caminhei, então, em direção ao Viaduto Santa Efigênia, pretendia atravessá-lo e ir comer no SAPS4. Nesse restaurante, já decadente, comi arroz e feijão aguado, onde se via aqui e ali alguns caroços de feijão, nem lembro se tinha pão. Tempos difíceis, tempos heroicos... de fome e de frustração.
Na rua, encontrei ciganas. Uma delas me agarrou com aquelas mãos ossudas, agourentas e pediu: “Deixa ler a sua sorte!” Respondi: “Não tenho dinheiro!” Ela insistiu: “Leio de graça, me dá um cigarro”. Dei-lhe o maço de Liberty curto, mata-rato, e ela virou minha mão e leu na palma: “Vai vencer na vida, mas sofrerá muito e viverá muito, isto é claro na sua linha da vida”. Na linha do amor, “Jesus! você é romântico e, uma morena o fará sofrer a vida toda”.
Desprendi minha mão das garras da cigana e, fui adiante. Na rua Santa Efigênia, fui assaltado e perdi parte do parco dinheiro, só não fiquei “liso” porque dispersara níqueis em vários bolsos. Do assalto, a cigana não predissera. Por isso, não acredito em leitura de sorte (buena-dicha).
E segui minha vida: nada consegui em São Paulo. Desisti da Cidade e resolvi voltar para minha casa, em Minas, como um fracassado.
No meio do caminho...
De madrugada, na plataforma do vagão, passava numa cidade, plena de luzes cintilantes. Ocorreu-me a ideia de que naquela empresa deveria haver muitos empregos. Estava, no momento, descascando uma laranja baía. Aconteceu estranha compulsão: havia que desembarcar. Peguei minha mala e desci, estava Volta Redonda. Nesta cidade vivi minha redenção. Fichei-me na Companhia Siderúrgica Nacional (CSN), onde trabalhei 34 (trinta e quatro) anos e ocupei cargos simples, até a Alta Administração. Glória a Deus! Setenta anos depois, já aposentado, batia as pernas, sem rumo, pela cidade. Topei com um cigano, na barraca dos ambulantes, debaixo do viaduto Heitor Leite Franco. Conversa vai, conversa vem, o cigano, que vendia moedas. filmes K-7, bem como medalhas; ofereceu-me uma estilhaçada, a qual adquiri imediatamente: Era a do Quarto Centenário de São Paulo. Ainda que não fosse a legítima, que perdi, era semelhante. Assim, reconstituí, em pensamento, os velhos tempos, de muita luta, na cidade paulistana.
Coisas inexplicáveis acontecem... Meninos, eu vivi!
E Deus leu o que eu escrevi por cima do meu ombro. (Knut Hamsun)
Estilhaços de Esperança
Em São Paulo, a fome me perseguia, / Um tostão, uma medalha, a utopia. / Nas ruas, um sonho, um brilho dourado, / Mas a vida, cruel, me mostrava o nada.
A cigana, com seus dedos nervosos, / Leria meu futuro, nos traços nebulosos / e via claro os mistérios gozosos / Que a sorte se dá com mãos laboriosas.
Do Anhangabaú ao Viaduto do Chá, / A medalha, um amuleto, se perdeu. / Em Volta Redonda, a sorte me sorriu, / Em meio ao aço, a esperança renasceu.
A medalha, um símbolo, do tempo passado, / Um lembrete bem folheado. / Mas em cada estilhaço, o recomeço, / A esperança nos move, em dia acabado. //
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